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Fat Charlie já conseguia ver as pessoas do funeral. Ele mudou de direção, encontrando um caminho que permitia que fosse diretamente a elas. Havia 30 pessoas, talvez mais, de pé em torno da cova. As mulheres usavam vestidos pretos e grandes chapéus pretos circundados por renda preta, como se fossem flores exóticas. Os homens usavam ternos sem manchas de suor. As crianças tinham um ar solene. Fat Charlie diminui o passo até andar de um jeito mais respeitoso, tentando se apressar sem se mover rápido demais para que ninguém notasse que estava com pressa. Ao alcançar o grupo de pessoas enlutadas, tentou assumir lugar mais à frente sem chamar muita atenção. Sua tentativa foi um fracasso, porque ele estava claramente arfando como uma morsa gorda que tentava subir uma escada. Pingava de suor e pisava em vários pés à medida que caminhava.

Sentiu olhares penetrantes sobre ele, mas fingiu não notar. Todos cantavam uma canção que Fat Charlie não conhecia. Ele mexia a cabeça no ritmo da música e fingia cantar, movendo os lábios de uma maneira que talvez pudesse dar a impressão de que participava ativamente da cantoria, sotto voce. Ele bem que poderia estar sussurrando uma prece ou fazendo movimentos labiais aleatórios. Aproveitou para dar uma olhada no caixão. Ficou satisfeito ao vê-lo fechado.

O caixão era uma coisa fantástica, feita de um material que parecia aço pesado, reforçado, de cor cinza-chumbo. “Quando houver a gloriosa ressurreição”, pensou Fat Charlie, “quando o anjo Gabriel tocar sua poderosa trombeta e os mortos saírem de seus caixões, o pai ficará preso em seu túmulo, batendo inutilmente na tampa, desejando que tivesse sido enterrado com um pé-de-cabra e talvez um maçarico.”

O “aleluia” final, profundamente melódico, começou a se dissipar. No silêncio que se seguiu, Fat Charlie pôde ouvir alguém gritando do outro lado dos jardins memoriais, perto do local por onde entrara.

O pastor perguntou:

— Alguém gostaria de dizer algo em memória?

Pelas expressões no rosto dos que estavam mais perto da cova, era óbvio que vários deles planejavam dizer alguma coisa. Mas Fat Charlie sabia que se tratava de um momento agora-ou-nunca. Sabe, você precisa fazer as pazes com o seu pai. Então tá.

Suspirou fundo e deu um passo à frente, até ficar bem na beirada da cova, e disse:

— Ahm. Com licença. Certo... Eu acho que tenho algo a dizer.

Os gritos lá longe ficavam cada vez mais altos. Muitos dos presentes lançavam olhares por sobre o ombro para ver de onde vinham. Os outros tinham os olhos fixos em Fat Charlie.

— Eu nunca fui o que se pode chamar de uma pessoa próxima do meu pai. Acho que nós dois não sabíamos como ficar próximos. Há 20 anos não faço parte da vida dele, e ele não fez parte da minha. Há muitas coisas difíceis de perdoar, mas aí um dia você percebe que não tem mais uma família. — Limpou o suor da testa com a mão e continuou: — Acho que eu nunca disse “eu te amo, pai” em toda a minha vida. Todos vocês talvez o conhecessem melhor do que eu. Alguns de vocês talvez o amassem. Vocês fizeram parte da vida dele, mas eu não. Então não tenho vergonha se vocês me ouvirem dizer isso. Pela primeira vez em 20 anos. — Ele olhou para baixo, para a impenetrável tampa de metal do caixão, e disse: — Eu te amo. E nunca vou te esquecer.

Os gritos ficaram ainda mais altos. Agora, no silêncio que se seguiu a declaração de Fat Charlie, altos e claros o suficiente para todos discernirem as palavras que vinham do outro lado dos jardins:

— Fat Charlie! Pára de importunar essas pessoas e vem pra cá agora mesmo.

Fat Charlie olhou para o mar de rostos desconhecidos, uma mistura de expressões perplexas, chocadas, iradas e horrorizadas. Com as orelhas pegando fogo, ele se deu conta.

— Ahm. Desculpem. Funeral errado.

Um pequeno garoto de orelhas grandes com um enorme sorriso no rosto disse, orgulhoso:

— Essa era a minha avó.

Fat Charlie saiu da pequena multidão murmurando desculpas pouco coerentes. Ele queria que o mundo acabasse. Sabia que não era culpa de seu pai, mas também sabia que seu pai teria achado tudo aquilo hilário.

De pé na calçada, com as mãos nos quadris, havia uma mulher gorda com cabelo cinzento e expressão zangada. Fat Charlie andava em sua direção como se andasse por um campo minado, como se tivesse 9 anos de idade novamente e estivesse em apuros.

— Cê não me ouviu gritar? — perguntou ela, com seu inglês de sotaque caribenho. — Cê passou direto por mim. Passou a maior vergonha! Por aqui. Cê perdeu o funeral e tudo. Mas tem uma pá de terra te esperando.

A Sra. Higgler não tinha mudado quase nada naqueles últimos 20 anos: estava um pouco mais gorda, um pouco mais grisalha. Comprimiu os lábios e o conduziu por uma das muitas calçadas do cemitério. Fat Charlie suspeitava que não havia deixado uma boa primeira impressão. Ela mostrava o caminho e, envergonhado, ele a seguia.

Um lagarto subiu rápido por um ferro da cerca de metal que circundava o jardim e depois ficou no topo de uma lança da cerca, experimentando o ar abafado da Flórida. O sol escondera-se por trás de uma nuvem, mas a tarde parecia na verdade ter ficado mais quente. O lagarto estufou o pescoço até formar um brilhante balão alaranjado.

Duas garças de pernas compridas, que Fat Charlie inicialmente tomara por ornamentos de jardim, olharam para ele quando passou por elas. Uma delas mergulhou a cabeça e depois ergueu novamente com uma grande rã pendurada no bico. Então começou, fazendo movimentos de deglutição, a tentar engolir a rã, que esperneava e se debatia no ar.

— Anda — disse a Sra. Higgler. — Deixa de enrolação. Já basta você não comparecer ao funeral do teu pai.

Fat Charlie suprimiu a vontade de contar que viajara 6.500 km naquele dia, alugara um carro e viera dirigindo desde Orlando, e pegara a estrada errada — afinal de contas, quem diabos teve a idéia de escolher um cemitério atrás de um Wal-Mart na saída da cidade? Eles continuaram a andar, passaram por um grande prédio de concreto que cheirava a formol e chegaram a uma cova aberta no ponto mais distante do cemitério. Não havia nada além dela, exceto uma cerca alta e, por trás dela, muitas árvores, palmeiras e mato. Na cova, jazia um modesto caixão de madeira. Já havia sobre ele montinhos de terra. Ao lado da cova, uma grande quantidade de terra e uma pá.

A Sra. Higgler pegou a pá e entregou-a a Fat Charlie.

— Foi uma cerimônia muito bonita. Alguns dos velhos amigos de bebedeira do teu pai vieram, e todas as senhoras da nossa rua. Apesar de ele ter ido pro andar de cima, a gente ainda vai se falar. Ele gostaria disso. E claro que teria gostado ainda mais se você tivesse aparecido.

Ela balançou a cabeça. Continuou:

— Agora vamos começar a enterrar. E, se você quiser se despedir dele, faça isso enquanto vai jogando a terra no caixão.

— Eu pensei que eu tivesse que jogar só uma ou duas pás de terra. Para mostrar boa vontade.

— Eu dei ao homem 30 pratas para ir embora — informou a Sra. Higgler. — Disse a ele que o filho do falecido vinha de avião lá da Inglaterra e que ia querer fazer tudo direitinho pro pai dele. Fazer tudo nos conformes. Não só “mostrar boa vontade”.

— Certo. Claro. Entendi.

Fat Charlie tirou paletó e o pendurou na cerca. Afrouxou a gravata, puxou-a pela cabeça e colocou-a no bolso do paletó. Pegou a pá e começou a jogar a terra negra dentro da cova aberta, naquele ar da Flórida tão denso quanto uma sopa.