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Muito embora as pessoas com quem Fat Charlie conversara não fossem de grande ajuda, elas foram bastante simpáticas. Ele parou várias vezes, em sua expedição rumo ao sul, para encher a garrafa d’água. Parou em cafés e em casas particulares. Todos pareciam muito felizes em vê-lo mesmo que não tivessem informações quanto à Sra. Higgler. Fat Charlie voltou ao hotel na hora do jantar.

No dia seguinte, partiu para o norte. Em seu caminho de volta para Williamstown, no final da tarde, parou em um topo de rochedo, desceu da bicicleta e seguiu empurrando-a até o portão de uma casa luxuosa e isolada que mirava a baía do alto. Pressionou o botão do interfone e disse alô, mas ninguém respondeu. Um grande carro negro estava parado na entrada, e Fat Charlie ficou pensando se a casa estaria deserta quando viu um leve tremor numa cortina de uma das salas do segundo andar. Pressionou o botão novamente.

— Alô? Só gostaria de saber se posso encher minha garrafa d’água aqui.

Não houve resposta. Talvez tivesse apenas imaginado ver alguém na janela. Fat Charlie parecia extremamente propenso a imaginar coisas naquele lugar: começou a sentir-se observado, não por alguém na casa, mas por alguém ou alguma coisa nos arbustos que ladeavam a estrada.

— Sinto muito pelo incômodo — desculpou-se. Subiu nova mente na bicicleta. Todo o caminho até Williamstown era uma descida. Fat Charlie sabia que passaria por um ou dois cafés no caminho de volta, ou talvez por uma casa. Quem sabe, com um dono amigável.

Fat Charlie estava descendo a estrada — os rochedos haviam se tornado uma colina íngreme em direção ao mar — quando um carro negro apareceu atrás dele e acelerou com um rugido. Tarde demais, ele percebeu que o motorista não o tinha visto. Houve uma batida e um longo arranhar do carro contra os guidões da bicicleta. Fat Charlie foi arremessado para fora da estrada, colina abaixo. O carro negro seguiu em frente.

Fat Charlie recuperou-se no meio da descida.

— Podia ter sido um acidente feio — disse em voz alta. Os guidões estavam retorcidos. Ele carregou a bicicleta de volta para a estrada. Um grave ribombar de baixo e bateria o alertou para a aproximação de um microônibus, e ele fez sinal.

— Dá pra colocar minha bicicleta aí atrás?

— Não cabe — respondeu o motorista, para em seguida tirar várias cordas elásticas debaixo do banco. Ele as usou para prender a bicicleta no teto do veículo. E sorriu.

— Você deve ser o inglês do limão.

— Não trouxe o limão comigo. Deixei no hotel.

Fat Charlie espremeu-se para entrar no ônibus, onde o baixo tonitruante revelou ser a extremamente improvável “Smoke On The Water”, do Deep Purple. Fat Charlie apertou-se contra uma grande mulher com uma galinha no colo. Atrás deles, duas garotas brancas conversavam sobre as festas das quais haviam participado na noite anterior e os defeitos dos namorados temporários que haviam conseguido durante as férias.

Fat Charlie notou o carro negro — uma Mercedes — subindo de volta a estrada. Havia uma longa marca de arranhão de um lado. Ele se sentiu culpado e esperou que sua bicicleta não tivesse provocado um arranhão muito profundo na pintura. As janelas eram tão escuras que o carro poderia não ter ninguém dirigindo...

Uma das garotas cutucou o ombro de Fat Charlie e lhe perguntou se ele sabia de alguma festa legal para aquela noite. Quando respondeu que não sabia, ela começou a lhe contar sobre uma festa que acontecera duas noites antes, numa caverna com uma piscina, luzes, sistema de som e tudo o mais. Dessa forma, Fat Charlie não pôde reparar que a Mercedes negra agora seguia o microônibus em Williamstown, e que ela apenas seguiu em frente quando ele retirou a bicicleta do teto do ônibus (“da próxima vez, você devia trazer o limão”) e a carregou para o lobby do hotel.

Só então o carro voltou para a casa na colina.

Benjamin, o concierge, examinou a bicicleta e disse a Fat Charlie para não se preocupar, porque dava para consertar até a manhã seguinte.

Fat Charlie voltou ao seu quarto, que tinha a cor da água do mar, e lá estava o limão, como um pequeno Buda verde, em cima do balcão.

— Você não serve pra nada — disse à fruta.

Mas não era justo. Era apenas um limão. Não havia absolutamente nada de especial nele. Ele fazia o melhor que podia.

Historias sao teias conectadas fio a fio, e você deve seguir cada história até o centro, porque o centro é o final. Cada pessoa é um fio da história.

Daisy, por exemplo.

Daisy não teria durado tanto tempo como policial se não possuísse também um lado sensato em sua natureza, que as pessoas viam a maior parte do tempo. Ela respeitava leis e regras mesmo sabendo que muitas delas eram completamente arbitrárias — decisões sobre onde era permitido estacionar, por exemplo, ou em que horários as lojas poderiam funcionar —, porque regras desse tipo faziam parte de algo maior. Elas mantinham a sociedade e as coisas seguras.

A moça que morava com Daisy achava que ela ficara louca.

— Você não pode sair de repente e dizer que está de férias. Não funciona assim. Isso não é um filme policial. Não dá pra aparecer do nada em qualquer parte do mundo buscando uma pista.

— Bom... Sendo assim, não vou fazer isso — Daisy respondeu, mentindo. — Só vou sair de férias então.

Daisy soou tão convincente que a pequena policial sensata que vivia em sua mente ficou chocada, em silêncio, por alguns segundos, e depois começou a explicar a ela exatamente o que fazia de errado. Começou dizendo que Daisy estava largando o trabalho sem autorização — passível, murmurou a policial sensata, de ser indiciada por negligência ao dever —, e continuou daí em diante.

A policialzinha ainda explicou, no caminho até o aeroporto e por todo o Atlântico, que, mesmo se Daisy conseguisse evitar um dano irreparável ao seu currículo — isso sem mencionar ser expulsa da polícia —, mesmo se conseguisse encontrar Grahame Coats, não havia nada que pudesse fazer. A polícia de sua Majestade não via com bons olhos o rapto de criminosos, e muito menos prisões efetuadas no exterior. Daisy duvidava de que Grahame Coats estaria disposto a colaborar e retornar de boa vontade ao Reino Unido.

Apenas quando ela desceu do avião jamaicano e respirou o ar de Saint Andrews — úmido, com cheiro de terra e temperos, quase doce — a pequena policial certinha que vivia em sua mente parou de apontar a loucura absurda que cometia. Aí outra voz surgiu, sufo-cando-a. A outra voz cantava “Malfeitores, cuidado!”. “Fiquem espertos! Malfeitores, lá vou eu!”, e Daisy marchava no ritmo da música. Grahame Coats matara uma mulher em seu escritório, em Aldwych, e escapara ileso praticamente debaixo de seu nariz.

Daisy balançou a cabeça, recolheu sua bagagem, informou ao oficial de imigração que estava na ilha de férias e saiu para o ponto de táxi.

— Eu queria um hotel que não fosse caro, mas que também não fosse nojento — disse ao motorista.

— Então eu conheço o lugar certo pra você, querida. Pode entrar.

Spider abriu os olhos e percebeu que se encontrava deitado de bruços, amarrado pelos braços a uma grande estaca enfiada no chão à sua frente. Não podia mexer as pernas. Não dava para virar o pescoço o suficiente para ver o que tinha às suas costas, mas poderia apostar que as pernas estavam igualmente presas. O movimento de tentar se erguer da poeira para olhar atrás de si fez arder seus arranhões.

Ele abriu a boca, e o sangue escuro pingou no chão empoeirado, umedecendo-o.