Spider ouviu algo e virou a cabeça o quanto pôde. Uma mulher branca olhava para ele, curiosa.
— Você está bem? Ah, que pergunta idiota. E só olhar pro seu estado. Você deve ser outro duppy. Estou certa?
Spider pensou a respeito. Ele não achava que era um duppy. Balançou a cabeça.
— Se você for, não precisa ter vergonha. Também sou uma, pelo jeito. Eu não conhecia o termo, mas no meu caminho pra cá conheci um cavalheiro encantador que me disse tudo a respeito. Deixa eu ver se posso ajudar. — Ela se agachou perto dele e tentou afrouxar as cordas. Suas mãos atravessaram Spider. No entanto ele pôde sentir o leve roçar dos dedos da mulher, como fios de névoa, em sua pele. — Infelizmente não consigo tocá-lo. Pelo menos isso indica que você ainda está vivo. Então se anime.
Spider quis que essa mulher-fantasma esquisita fosse logo embora. Ele não conseguia pensar direito.
— De qualquer forma, quando compreendi a coisa toda, resolvi permanecer na Terra até me vingar do meu assassino. Expliquei isso ao Morris, que apareceu numa tela de TV em Selfridges. Ele disse que eu não estava percebendo o que há de mais importante nessa história toda de abandonar o corpo. Mas eu acho que, se eles esperavam que eu desse a outra face, sem dúvida há mais coisa por vir. Sei disso porque aconteceu com mais gente. E tenho certeza de que posso dar uma de fantasma que aparece onde não é chamado se tiver a chance. Você fala?
Spider sacudiu a cabeça, e o sangue pingou de sua testa em seus olhos. Ardeu. Ele pensou em quanto tempo levaria para nascer uma nova língua. Prometeu conseguia um fígado novo de um dia pro outro, e Spider tinha certeza de que um fígado era mais trabalhoso que uma língua. Fígados tinham todo um processo de reações químicas: bilirrubina, uréia, enzimas, tudo isso. E decompunham álcool também, o que por si só já era bem trabalhoso. Tudo o que línguas faziam era falar. Bom, e lamber, claro...
— Não consigo parar de falar — disse a mulher-fantasma de cabelo loiro. — Ainda tenho muito caminho pela frente, acho.
Ela começou a caminhar e a tornar-se mais indistinta enquanto se afastava. Spider levantou a cabeça e a viu deslizar de uma realidade para outra, como uma foto desbotando ao sol. Tentou chamá-la de volta, mas todos os sons que produzia eram abafados e incoerentes. Sem língua. De algum lugar, à distância, pôde ouvir o grito de um pássaro. Testou suas amarras, e elas não cederam.
Spider se viu pensando novamente na história que Rosie lhe contara, sobre o corvo que salva um homem de um leão da montanha. A história fazia sua mente cocar mais que as marcas de garras em seu rosto e peito. “Concentre-se.” O homem no chão, lendo ou se bronzeando. O corvo crocitando na árvore. E um grande felino nos arbustos— Então a história se remodelou, e Spider conseguiu capturá-la. Nada mudara — era só uma questão de como olhar os ingredientes.
“E se”, pensou Spider, “o pássaro não tivesse crocitado para alertar ao homem a aproximação do grande felino? E se ele estivesse chamando o leão da montanha, alertando-o para o fato de que havia um homem no chão, morto, dormindo ou morrendo? Que tudo o que o grande felino tinha a fazer era dar cabo do homem, e aí o corvo poderia banquetear-se com os restos.-”
Spider abriu a boca para gemer, e o sangue correu de sua boca para o chão de barro poeirento.
A realidade esgarçou-se. O tempo passou naquele lugar.
Spider, sem língua, furioso, ergueu a cabeça para ver os pássaros fantasmas que voavam ao seu redor, gritando.
Perguntou-se onde estaria. Ali não era o universo cor de cobre da Mulher Pássaro nem sua caverna, mas também não era o lugar que Spider havia se acostumara a chamar de mundo real. No entanto ficava bem perto do mundo real, tão perto que quase podia sentir-lhe o gosto, se pudesse sentir qualquer outra coisa que não o gosto de ferro do sangue em sua boca. Perto o suficiente para tentar tocá-lo, se não estivesse amarrado ao chão por uma estaca.
Se Spider não estivesse perfeitamente seguro de sua sanidade, seguro naquele nível que só é encontrado nas pessoas que pensam ser Júlio César e ter sido enviadas ao mundo para salvá-lo, poderia achar que estava enlouquecendo. Primeiro uma loira que dizia ser uma duppy. Agora ele ouvia vozes. Bem, uma voz, pelo menos. A de Rosie. E ela dizia:
— Eu não sei. Achava que seriam só férias, mas ver essas crianças sem nada é de cortar o coração. Precisam de tanta coisa.
Enquanto Spider tentava decifrar o significado disso, ela disse:
— Quanto tempo mais ela vai levar no banho? Que bom que você tem água quente o bastante aqui.
Spider imaginava se as palavras de Rosie tinham algum significado importante, se seriam a chave para sair dessa encrenca. Ele duvidava. Ainda assim, escutou com atenção, ponderando se o vento carregaria mais palavras de um mundo ao outro. Além do quebrar de ondas nos recifes, bem abaixo e atrás dele, não havia nada além de silêncio. Mas um tipo específico de silêncio. Há, de acordo com o que Fat Charlie acreditava, muitos tipos de silêncio. Túmulos são silenciosos à sua maneira, o espaço é silencioso de outra forma, e os topos das montanhas têm outro tipo de silêncio. Ali o silêncio era assombrado. Um silêncio que vigiava. Nesse silêncio, algo se movia com patas suaves e aveludadas, com músculos que pareciam molas de aço estendidas sob uma pelagem macia. Algo que tinha a cor de sombras na grama. Algo que tomava cuidado para que você não ouvisse nada além do estritamente necessário. Era um silêncio se movendo de um lado ao outro diante de Spider, lento e inexorável, e cada vez mais e mais perto.
Spider ouvia aquilo no silêncio, e os pêlos na sua nuca se arrepiaram. Ele cuspiu sangue no pó e esperou.
Em sua casa na colina, Grahame Coats andava de um lado ao outro. do quarto para o estúdio, depois descendo as escadas para a cozinha e de volta para a biblioteca, e de lá para o quarto de novo. Estava zangado consigo mesmo: como poderia ter sido tão estúpido a ponto de achar que a visita de Rosie era uma coincidência?
Compreendera isso quando o interfone tocou e ele pôde ver no circuito fechado de TV o rosto insípido de Fat Charlie. Não havia dúvida. Era uma conspiração.
Ele agira como um tigre entrando no carro, certo de que conseguiria forjar facilmente um caso de atropelamento e fuga: se encontrassem um ciclista em pedaços na estrada, todos pensariam que havia sido um microônibus. Infelizmente não imaginara que Fat Charlie estaria pedalando tão perto da lateral da estrada. Grahame Coats não quis levar o carro mais para a beirada do declive, às margens do caminho, e agora se arrependia disso. Não, Fat Charlie enviara as duas mulheres que agora estavam no depósito de carne. Elas eram espiãs e haviam se infiltrado em sua casa. Por sorte, conseguira pôr um fim àquele plano. Sem dúvida, teve a intuição de que havia algo errado com elas.
Enquanto pensava nas mulheres, Grahame Coats lembrou-se de que ainda não as havia alimentado. Ele devia lhes dar algo para comer. E um balde. Elas precisariam de um balde, provavelmente, após 24 horas. Ninguém poderia dizer que ele era um animal sem coração.
Grahame Coats havia comprado uma arma em Williamstown na semana anterior. Era fácil comprar armas em Saint Andrews — era bem esse tipo de lugar. A maior parte das pessoas não se dava ao trabalho de comprar armas, e era bem esse tipo de lugar também. Grahame Coats retirou a arma da gaveta ao lado da cama e desceu para a cozinha. Pegou um balde de plástico do armário debaixo da pia e jogou dentro tomates, um inhame cru, um pedaço meio comido de queijo cheddar e uma caixa de suco de laranja. Satisfeito por haver pensado nisso, pôs ali também um rolo de papel higiênico.
Desceu para a adega. Nenhum barulho vinha do depósito de carne.
— Eu estou armado. E não tenho medo de usar a arma. Vou abrir a porta agora. Por favor, vão para o fundo da sala, virem-se e fiquem com as mãos na parede. Eu trouxe comida. Cooperem e vocês serão libertadas sem nenhum ferimento. Cooperem e ninguém se machucará. Ou seja, nada de gracinhas — disse ele, felicíssimo por ter usado uma enorme cadeia de clichês.