— O restaurante já está aberto? Estou faminta.
Ouviram-se o tum-bum-dum do baixo e o toque do piano elétrico. A banda largou os instrumentos e acenou para a maitre, que disse:
— Está aberto, venham.
A mulher pequena encarou Fat Charlie com uma expressão de grande surpresa.
— Oi, Fat Charlie! Para que serve o seu limão?
— É uma longa história.
— Bem — respondeu Daisy. — Nós temos todo o jantar pela frente. Por que você não me conta tudo a respeito?
Rosie se perguntava se a loucura seria contagiosa. Nas trevas cegas sob a casa da colina, ela sentira algo passar roçando por ela. Algo macio e esbelto. Algo grande. E que rosnava suavemente ao rodeá-la em círculos.
— Você ouviu também? — perguntou ela.
— Claro que ouvi, sua sonsa — respondeu sua mãe. E completou: — Ainda tem suco de laranja?
Rosie tateou no escuro pela caixa de suco e a passou para sua mãe. Ela ouviu o som de alguém bebendo, e sua mãe disse:
— Não será esse animal que matará a gente. Ele é quem vai.
— Grahame Coats. É.
— Ele é um homem mau. Algo o está domando como se fosse um cavalo. Mas um cavalo ruim. Um homem ruim.
Rosie estendeu o braço e segurou a mão ossuda de sua mãe, sem dizer nada, porque não havia muito a dizer.
— Sabe — começou a mãe depois de um tempo —, estou muito orgulhosa de você. Você foi uma boa filha.
— Oh.. — disse Rosie.
A idéia de não ser uma decepção para sua mãe era algo novo para ela. Rosie não tinha certeza de como se sentia a respeito.
— Talvez você devesse ter se casado com o Fat Charlie. Aí não estaríamos aqui.
— Não. Eu não deveria me casar com o Fat Charlie, eu não o amo. Portanto você não estava totalmente enganada.
Elas ouviram uma porta bater no alto.
— Ele saiu — observou Rosie. — Rápido. Enquanto ele está fora. Vamos cavar um túnel.
Primeiro ela deu risadinhas. Depois começou a chorar.
Fat Charlie tentava entender o que Daisy estava fazendo na ilha. Daisy também se esforçava para entender o que Fat Charlie estava fazendo por lá, mas nenhum dos dois parecia ter muito sucesso. Uma cantora, num longo vestido vermelho, boa demais para cantar música ao vivo às sextas-feiras no pequeno restaurante de um hotel, apresentava-se no pequeno palco no canto da sala, cantando “I ve Got You Under My Skin”.
Daisy disse:
— Você está procurando pela mulher que vivia do lado da sua casa quando era pequeno porque ela pode ajudar você a encontrar o seu irmão.
— Eu recebi uma pena. Se ainda estiver com ela, posso trocá-la pelo meu irmão. Vale a pena tentar.
Daisy piscou lenta e pensativamente, nem um pouco impressionada, e beliscou a salada.
— Bom, você está aqui porque acha que Grahame Coats veio pra cá depois de matar Maeve Livingstone. Mas não veio como policial. Veio por conta própria, caso ele esteja aqui mesmo. Mas, se ele estiver aqui, não há nada que você possa fazer a respeito.
Daisy lambeu uma sementinha de tomate de seus lábios e pareceu meio desconfortável.
— Eu não vim como policial. Estou aqui como turista.
— Mas você só abandonou o emprego e veio pra cá atrás dele. Eles podem prender você por isso, ou coisa do tipo, acho.
— Então é bom que Saint Andrews não tenha tratados de extradição, não é?
Fat Charlie murmurou:
-Ai, meu Deus.
O motivo de ter dito “Ai, meu Deus” era a cantora, que saíra do palco e agora caminhava pelas mesas com um microfone portátil. Naquele momento, perguntava a dois turistas alemães de onde eram.
— Por que ele viria pra este lugar? — perguntou Fat Charlie.
— Sigilo bancário. Terrenos baratos. Nada de tratados de extradição. Talvez adore frutas cítricas.
— Passei dois anos morrendo de medo desse homem. Vou pegar mais daquele negócio de peixe com banana verde. Você quer?
— Não, obrigada. Quero deixar espaço pra sobremesa.
Fat Charlie dirigiu-se ao bufê fazendo o caminho mais longo para evitar o olhar da cantora, que era mesmo muito bonita em seu vestido vermelho coberto de lantejoulas que refletiam a luz e brilhavam quando se movia. Era melhor que a banda. Fat Charlie queria que ela voltasse logo ao palco e continuasse a cantar seus clássicos. Ele tinha gostado da versão dela para “Night and Day” e de uma versão especialmente tocante de “Spoonful of Sugar”. Também queria que ela parasse de interagir com os clientes. Ou, pelo menos, que parasse de falar com as pessoas do mesmo lado da sala em que ele estava.
Fat Charlie abarrotou seu prato com mais da comida que ele havia gostado da primeira vez. Ficou pensando que pedalar pela ilha realmente abria o apetite.
Quando voltou para sua mesa, Grahame Coats, com algo que vagamente lembrava uma barba crescendo na parte de baixo de seu rosto, estava sentado perto de Daisy, sorrindo feito uma doninha que cheirou muita cocaína.
— Fat Charlie — começou Grahame Coats, e deu uma risadinha desconfortável. — Não é fantástico? Eu ando à sua procura, para um pequeno tête-à-tête, e quem eu acho de bônus? Esta glamourosa policialzinha aqui. Por favor, sente-se e tente não fazer uma cena.
Fat Charlie ficou paralisado como se fosse uma estátua de cera.
— Sente-se — repetiu Grahame Coats. — Eu tenho uma arma apontada aqui para a barriga da senhorita Daisy.
Daisy olhou para Fat Charlie com olhos suplicantes e fez que sim. Suas mãos se encontravam sobre a mesa, espalmadas. Fat Charlie sentou-se.
— Ponha as mãos onde eu possa vê-las. Espalmadas sobre a mesa, como as dela.
Fat Charlie obedeceu. Grahame Coats fungou.
— Eu sempre soube que você era um policial infiltrado, Nancy. Um agent provocateur, certo? Entra nos meus escritórios, arma pra cima de mim, me rouba de cara limpa.
— Eu nunca— — começou Fat Charlie, mas calou-se ao ver a expressão no rosto de Grahame Coats.
— Você se achou tão esperto — continuou Grahame Coats. — Vocês todos acharam que eu cairia nessa. Foi por isso que você enviou as outras duas antes, não foi? As duas lá em casa? Achou mesmo que eu acreditaria que elas estavam num cruzeiro? Você teria que se esforçar muito mais que isso pra passar a perna em mim. Pra quem mais você contou? Quem mais sabe?
Daisy disse:
— Não sei muito bem do que você está falando, Grahame.
A cantora terminava “Some of These Days”: era uma voz de cantora de blues, uma voz rica, e agitava no ar como se fosse um cachecol de veludo.
— Você paga a conta — ordenou Grahame. — Aí eu vou acompanhar você e a mocinha até o carro. De lá, vamos pra minha casa, pra conversarmos direito. Se fizerem uma gracinha, eu atiro nos dois. Capiche?
Fat Charlie “capichou” direitinho. Ele também “capichou” quem dirigia a Mercedes na outra tarde, e como escapara por pouco de morrer. Fat Charlie começava a “capichar” o quanto Grahame Coats era maluco e a chance mínima que Daisy e ele tinham de sair dessa vivos.
A cantora havia terminado a canção, e as pessoas espalhadas pelo restaurante aplaudiram. Fat Charlie mantinha suas mãos sobre a mesa e, olhando além de Grahame Coats, na direção da cantora, mandou-lhe uma piscada com o olho que Coats não podia ver. Ela estava cansada das pessoas que evitavam olhar em seus olhos, e a piscadela de Fat Charlie foi mais que bem-vinda.
Daisy disse:
— Grahame, obviamente eu vim aqui por sua causa, mas o Charlie só....
Ela parou e fez o tipo de expressão que as pessoas fazem quando têm uma arma sendo empurrada contra o estômago. Grahame Coats disse:
— Prestem atenção. Por causa das testemunhas inocentes aqui reunidas, somos todos bons amigos. Vou pôr a arma no bolso, mas ainda estarei apontando pra você. Nós vamos nos levantar. E vamos pro meu carro. E eu vou..