Os tornozelos de Spider ainda estavam presos às cordas, e ele mal podia andar. Suas mãos e seus pés formigavam. Ficou trocando de um pé para o outro, tentando parecer que fazia aquilo de propósito, como se fosse algum tipo de dança de ameaça, e não porque ficar de pé doía.
Queria agachar-se e desamarrar os tornozelos, mas não ousava tirar os olhos da fera.
A estaca era pesada e grossa, mas pequena demais para servir como uma lança, e grosseira e grande demais para ser outra coisa. Spider a segurava pela ponta mais fina, onde fora afiada, e olhou para longe, para o mar, intencionalmente evitando olhar para o lugar onde se encontrava o animal, confiando em sua visão periférica.
O que foi mesmo que ela disse? “Você vai chorar. Vai choramingar. O seu medo o deixará nervoso.”
Spider começou a choramingar. Então chorou, como se fosse um cabritinho ferido, perdido, indefeso, sozinho.
Um movimento rápido, cor de areia, sem dar tempo suficiente para registrar os dentes e as garras que iam em sua direção. Spider rodou a estaca como um bastão de beisebol, o mais forte que conseguia, e sentiu com satisfação ela se chocar contra o nariz da fera.
O Tigre parou, ficou olhando para ele como se não pudesse acreditar no que via e então fez um som gutural, um rugido queixoso. Depois andou, com as pernas rígidas, de volta para onde viera, para a vegetação, como se tivesse algo importante a fazer de que se desejava livrar logo. Olhou para Spider ressentido, por cima do ombro. Uma fera ferida, que lhe deu o olhar de um animal decidido a voltar.
Spider observou enquanto ia embora.
Então se sentou e pôs-se a tirar as amarras de seus tornozelos.
Caminhou, um pouco cambaleante, ao longo da beira do penhasco, seguindo para baixo. Logo havia um riacho cruzando seu caminho, correndo para a beirada do penhasco, numa cachoeira brilhante. Spider ajoelhou-se, pôs as mãos em concha e começou a beber a água fresca.
Depois começou a apanhar pedras. Pedras pesadas, do tamanho de seu punho. Colocou todas empilhadas, como bolas de neve.
— Você não comeu nada — disse Rosie.
— Coma você. Precisa ficar forte — retrucou a mãe. — Eu comi um pouco do queijo. Já é o bastante.
Fazia frio naquele lugar, e estava escuro. Não é o tipo de escuro ao qual você consegue acostumar os olhos. Não havia nenhuma luz. Rosie andou por toda a área do depósito de carne, seus dedos contra o cimento, as pedras e os tijolos, procurando algo que pudesse ajudar, mas não encontrou nada.
— Você costumava comer. Quando o papai estava vivo — observou Rosie.
— O seu pai também costumava comer. E veja que fim levou. Um ataque cardíaco aos 41 anos de idade. Em que mundo vivemos?
— Mas ele adorava a comida que fazia.
— Ele adorava tudo — concordou a mãe com voz amarga. — Adorava comida, adorava as pessoas, adorava a filha. Adorava cozinhar. E me adorava. O que ele ganhou com isso? Só uma morte prematura. Você não devia sair amando coisas por aí desse jeito. Eu te avisei.
— É. Acho que avisou.
Caminhou em direção da voz da mãe, com a mão na frente do rosto para não bater numa das correntes penduradas no meio do depósito. Encontrou o ombro ossudo da mãe, e a envolveu com o braço.
— Eu não estou com medo — disse Rosie no escuro.
— Então você está maluca — respondeu a mãe.
Rosie largou a mãe e voltou para o meio do depósito. Ouviu-se um barulho súbito, de algo rachando. Poeira e pó de gesso caíram do teto.
— Rosie? O que você está fazendo?
— Balançando na corrente.
— Cuidado. Se essa corrente se soltar, você vai cair no chão e arrebentar a cabeça quando menos esperar. — Não houve resposta da filha. A Sra. Noah continuou: — Eu te disse. Você está maluca.
— Não. Não estou. Só não estou mais com medo. Acima delas, na casa, a porta da frente bateu.
— O Barbazul chegou — disse a mãe de Rosie.
— Eu sei, eu ouvi. Mas mesmo assim não estou com medo.
As pessoas continuavam a dar tapas nas costas de Fat Charlie e a pagar bebidas com guarda-chuvas dentro para ele. Além disso, recebeu cinco cartões de visita de pessoas que trabalhavam com música e estavam na ilha para ver o festival.
Em todo o salão, as pessoas sorriam para Charlie. Ele tinha um braço em torno de Daisy e podia senti-la tremendo. Ela aproximou os lábios do seu ouvido:
— Você é completamente doido, sabia?
— Funcionou, não funcionou?
Ela olhou para ele.
— Você é cheio de surpresinhas.
— Vamos. Ainda não acabou.
Ele andou na direção da maitre.
— Com licença. Havia uma mulher aqui enquanto eu cantava. Ela entrou e encheu de novo a caneca dela naquela cafeteira ali no balcão. Para onde ela foi?
A gerente piscou e encolheu os ombros. Disse:
— Não sei.
— Ah, sabe sim.
Ele se sentia seguro de si, esperto. Sabia que logo se sentiria ele mesmo de novo, mas tinha cantado uma música para uma platéia e gostado da idéia. Fizera isso para salvar a vida de Daisy e a sua própria, e conseguiu ambas as coisas.
— Vamos conversar lá fora.
Era a música. Enquanto cantava, tudo ficara perfeitamente claro. E continuava claro. Ele andou na direção do saguão, e Daisy e a maitre o seguiram.
— Qual o seu nome? — perguntou para a maitre.
— Clarissa.
— Oi, Clarissa. Qual o seu sobrenome?
Daisy disse:
— Charlie, a gente não devia chamar a polícia?
— Um minuto. Clarissa de quê?
— Higgler.
— E qual a sua relação com Benjamim? O concierge.
— É o meu irmão.
— E qual exatamente é a relação de vocês dois com a Sra. Higgler? Callyanne Higgler?
— São meus sobrinhos, Charlie — interrompeu a Sra. Higgler, que estava na entrada. — Mas agora acho melhor você escutar a sua noiva e chamar a polícia. Não acha?
Spider estava sentado perto do riacho, no alto do penhasco, de costas para ele, com uma pilha de pedras à sua frente, quando um homem apareceu no gramado alto. Estava nu, exceto por uma tira de pele cor de areia em volta da cintura. Na parte de trás dela descia um rabo. Usava um colar de dentes afiados, brancos e pontudos. Seu cabelo era preto e comprido. Caminhava tranqüilamente na direção de Spider, como se só fizesse seu passeio matinal e a presença de Spider ali fosse uma surpresa agradável.
Spider pegou uma pedra do tamanho de um pomelo e sentiu o peso na mão.
— Olá, filho de Anansi — cumprimentou o desconhecido. — Eu estava passando e vi você. Pensei que talvez houvesse algo que eu pudesse fazer para ajudar.
Seu nariz parecia torto e machucado. Spider fez que não com a cabeça. Sentia falta da língua.
-Vendo você aí, acabo pensando: “pobre filho de Anansi, deve estar com tanta fome”. — O homem sorriu exageradamente. — Tenho comida o suficiente aqui para nós dois.
Ele trazia um saco em cima do ombro. Abriu-o e enfiou a mão direita nele, tirando um cordeirinho de rabo preto, recentemente abatido. Ele o segurou pelo pescoço. A cabeça do animal balançava.
— Seu pai e eu comemos juntos em muitas ocasiões. Há algum motivo para você e eu não fazermos a mesma coisa? Você pode acender o fogo. Eu vou limpar o cordeiro e arranjar uma vareta para girá-lo sobre a fogueira. Não dá até pra sentir o gosto?
Spider sentia tanta fome que estava tonto. Se ainda estivesse de posse da própria língua, talvez dissesse “sim”, seguro de sua habilidade de sair de qualquer situação complicada na base da conversa. Mas ele não tinha língua. Pegou uma segunda pedra com a mão esquerda.
— Então sejamos amigos e vamos celebrar, e que não haja mais desentendimentos... — disse o homem.
“Sei... e o abutre e o corvo limparão os meus ossos”, pensou Spider.
O homem deu mais um passo na direção de Spider, que por sua vez decidiu que era o momento de atirar a primeira pedra. Ele tinha uma boa mira e um braço excelente, e a pedra bateu onde queria que batesse, no braço direito do desconhecido, que deixou o cordeiro cair. A outra pedra atingiu o homem na lateral da cabeça. Spider apontara para um lugar entre os olhos demasiadamente separados, mas o desconhecido se moveu.