— Acho que tudo é uma questão de autoconfiança — Fat Charlie explicou. — O mais importante não são os detalhes. É a atmosfera mágica.
No caso, a atmosfera mágica tinha dificuldade de acontecer por causa da tendência de Benjamin Higgler a olhar ao redor e explodir em gargalhadas histéricas, e também pelo fato de Daisy não parar de dizer que tudo aquilo era muito ridículo.
A Sra. Higgler derramou as ervas escolhidas numa taça de vinho branco que sobrara.
E então começou a fazer seu “hum-hum”. Levantou as mãos em sinal de encorajamento, e os outros começaram a cantarolar “hum-hum” com ela, como abelhas bêbadas. Fat Charlie ficou esperando que algo acontecesse.
Nada aconteceu.
— Fat Charlie — disse a Sra. Higgler. — Cante você também.
Fat Charlie engoliu em seco. “Não há motivo para ter medo”, disse a si mesmo. Cantara na frente de um monte de gente. Fizera uma proposta de casamento na frente de uma platéia para uma mulher que mal conhecia. Cantarolar fazendo “hum-hum” seria moleza.
Reconheceu a nota musical da Sra. Higgler e deixou-a vibrar em sua garganta.
Ele conteve o medo. E começou a cantarolar.
Benjamin parou de rir. Seus olhos se arregalaram. Havia uma expressão de espanto em seu rosto, e Fat Charlie ia parar de cantarolar para descobrir qual era o problema, mas a cantoria estava dentro dele agora, e as chamas das velas tremiam..
— Olhem pra ele! — Benjamin exclamou. — Ele está..
E Fat Charlie teria se perguntado o que exatamente ele estava, mas era tarde demais para isso.
A neblina se dissipou.
Fat Charlie andava sobre uma ponte, uma ponte longa e branca, por cima de uma água cinzenta. Um pouco à sua frente, no meio da ponte, um homem estava sentado numa cadeirinha de madeira. Estava pescando. Um chapéu panamá verde cobria os seus olhos. Parecia tirar um cochilo. Não se moveu quando Fat Charlie chegou perto.
Fat Charlie reconheceu o homem. Pousou a mão no ombro dele.
— Sabe, eu sabia que você estava fingindo. Não achei que estivesse realmente morto.
O homem na cadeira não se moveu, mas sorriu.
— Isso mostra que você sabe muito pouco — disse Anansi. — Estou mortinho da silva. — Se espreguiçou extravagantemente, tirou um charuto pequeno e preto detrás da orelha e o acendeu com um fósforo. — E, estou morto. Acho que vou continuar morto por um tempinho. Se você não morre de vez em quando, aspessoas não te valorizam.
— Mas..
Anansi tocou os próprios lábios com um dedo para pedir silêncio. Pegou a vara de pescar e começou a recolher a linha. Apontou para uma rede pequena. Fat Charlie pegou a rede e a manteve parada enquanto seu pai baixava um peixe prateado, comprido e sacolejante que estava dentro dela. Anansi tirou o anzol da boca do peixe e depois o deixou cair num balde branco.
— Pronto. O jantar de hoje já está arranjado.
Pela primeira vez, Fat Charlie deu-se conta de que já era noite quando se sentara com Daisy e os Higglers mas, onde quer que estivesse agora, o sol ainda não tinha se posto, apesar de estar baixo.
Seu pai dobrou a cadeira e a deu para Fat Charlie carregar junto com o balde. Começaram a andar pela ponte.
— Sabe... Sempre pensei que, se você viesse um dia falar comigo, eu diria um monte de coisas pra você. Mas parece que está se saindo bem sem ajuda. Então por que é que você veio aqui? — perguntou o sr. Nancy.
— Não tenho certeza. Estava tentando encontrar a Mulher Pássaro. Quero devolver a pena pra ela.
— Você não devia ter se metido com gente desse tipo — aconselhou seu pai num tom alegre. — Não sai nada de bom daí. É toda cheia de ressentimento, aquela mulher. Mas ela é covarde.
— Foi o Spider — acusou Fat Charlie.
— Culpa sua. Deixar aquela velha intrometida mandar metade de você embora.
— Eu era uma criança. Por que você não fez nada?
Anansi empurrou o chapéu para trás na cabeça.
— A velha Dunwiddy não poderia fazer nada que você não permitisse. Você é o meu filho, afinal de contas.
Fat Charlie pensou nisso. Depois disse:
— Mas por que você não me contou?
— Você está se saindo bem. Está descobrindo tudo por si só. Você descobriu as músicas, não descobriu?
Fat Charlie se sentia mais desajeitado, mais gordo e uma fonte de desapontamento ainda maior para seu pai, mas não disse simplesmente “Não”. Em vez disso, perguntou:
— O que você acha?
— Eu acho que você está chegando lá. O negócio das músicas é que são exatamente como histórias. Não significam nada se não houver ninguém para ouvir.
Aproximavam-se do final da ponte. Fat Charlie sabia, sem que fosse preciso que alguém dissesse, que essa era a última chance que teriam para conversar. Havia tantas coisas que precisava descobrir, tantas coisas que queria saber. Resolveu falar.
— Pai... Quando eu era criança. Por que você me humilhava?
O velho franziu o rosto.
— Humilhava você? Eu te amava.
— Você me fez ir pra escola fantasiado de presidente Taft. Você acha que isso é amor?
Houve um som agudo saindo da garganta do velho que poderia ter sido uma risada. Depois ele chupou o charuto. A fumaça saía dos seus lábios como um balão de história em quadrinhos meio fantasmagórico.
— Sua mãe teve um dedo nisso. Não temos muito tempo. Você vai querer desperdiçar o tempo que temos para conversar brigando?
Charlie sacudiu a cabeça.
— Acho que não.
Tinham chegado ao final da ponte.
— Bom, quando você vir o seu irmão, quero que entregue uma coisa a ele.
— O quê?
Seu pai estendeu a mão e puxou a cabeça de Charlie para baixo. Depois o beijou suavemente na testa.
— Isso.
Fat Charlie ficou ereto. Seu pai o olhava com uma expressão que, se Charlie a tivesse visto em qualquer outra pessoa, teria achado que era orgulho.
— Me deixa ver a pena.
Fat Charlie meteu a mão no bolso. A pena estava lá, parecendo ainda mais amassada e destruída que antes.
Seu pai fez um som de “tchh” com a boca e ergueu a pena contra a luz.
— E uma bela pena. Não é bom que fique toda amassada. Ela não vai querer de volta se estiver toda estragada.
O sr. Nancy passou a mão na pena, e então ela ficou perfeita. Fez uma cara séria para a pena.
— Você vai amassar tudo de novo.
Assoprou as unhas e as esfregou no paletó. Então pareceu tomar uma decisão. Tirou o chapéu e colocou a pena na faixa do chapéu.
— Toma, você precisa mesmo de um chapéu bacana. — Pôs o chapéu na cabeça de Fat Charlie. — Fica bem em você.
Fat Charlie suspirou.
— Pai Eu não uso chapéu. Fica ridículo. Vou ficar parecendo um perfeito idiota. Por que você sempre tenta me fazer passar vergonha?
Na luz que diminuía, o velho olhou para o filho.
— Você acha que eu mentiria pra você? Filho, tudo o que você precisa para usar um chapéu é atitude. E você tem isso. Acha que eu diria que você está bem se não estivesse? Você está elegante de verdade. Não acredita em mim?
Fat Charlie disse:
— Não muito.
— Então veja — disse o pai. Apontou por sobre a murada da ponte. A água embaixo deles estava parada e tranqüila como um espelho, e o homem olhando lá de baixo parecia realmente elegante com seu novo chapéu verde.
Fat Charlie ergueu os olhos para dizer ao seu pai que talvez ele, Fat Charlie, estivesse errado, mas o velho sumira.
Fat Charlie saiu da ponte e caminhou rumo ao crepúsculo.
— Muito bem... eu quero saber exatamente onde ele está. Para onde ele foi? O que a senhora fez com ele?
— Eu não fiz nada. Deus do céu, minha filha, isso não aconteceu da última vez — respondeu a Sra. Higgler.
— Foi como se ele tivesse sido teleportado pela nave-mãe — observou Benjamin. — Que máximo! Efeitos especiais na vida real.
— Eu quero que a senhora o traga de volta — exigiu Daisy, nervosa. — Quero ele aqui agora.