— Eu nem sei onde ele está! E não mandei ele pra lá. Ele mesmo fez isso — respondeu a Sra. Higgler.
— De qualquer modo... E se ele estiver lá, fazendo o que tem que fazer, e nós o chamarmos de volta? Pode ser que estrague tudo — sugeriu Clarissa.
— Exatamente — concordou Benjamin. — Como teleportar de volta o grupo de aterrissagem bem no meio da missão.
Daisy pensou a respeito e ficou irritada ao perceber que isso fazia sentido. Pelo menos tanto sentido quanto as coisas que aconteciam nos últimos dias.
— Se nada mais vai acontecer, preciso voltar pro restaurante. Pra ver se está tudo bem — disse Clarissa.
A Sra. Higgler tomou um gole de seu café.
— Nada vai acontecer por aqui — comentou.
Daisy bateu a mão na mesa.
— Olha, com licença. Mas tem um assassino à solta. Agora o Fat Charlie foi chamado para a nave-mestra.
— Nave-mãe — corrigiu Benjamin.
A Sra. Higgler piscou.
— Tá. A gente tem que fazer alguma coisa. O que você sugere?
— Eu não sei — admitiu Daisy, e se odiou por dizer isso. — Sei lá. Passar o tempo.
Pegou uma edição do Williamstown Courier que a Sra. Higgler estava lendo e começou a folhear.
A história sobre as turistas desaparecidas, as mulheres que não voltaram para o navio onde faziam um cruzeiro, aparecia numa coluna da página 3. “As duas que estão lá em casa”, disse Grahame Coats, em sua cabeça. “Você acha que eu ia acreditar que elas estavam no navio?”
Finalmente Daisy transformou-se na policial que era.
— Preciso de um telefone.
— Vai ligar pra quem?
— Acho que podemos começar com o ministro do turismo e o chefe de polícia. E daí em diante.
O sol, vermelho diminuía no horizonte. Spider, se não fosse Spider, teria ficado desesperado. Na ilha, naquele lugar, havia uma linha distinta entre o dia e a noite, e Spider observou enquanto o último vestígio do sol era devorado pelo mar. Tinha suas pedras e duas estacas.
Desejou ter uma fogueira.
Imaginou quando a lua se ergueria. Quando a lua surgisse, talvez tivesse alguma chance.
O sol se pôs. Um último borrão vermelho submergiu no mar escuro, e finalmente era noite.
— Filho de Anansi — disse uma voz na escuridão. — Logo eu poderei me alimentar. Você não saberá que estou aí até sentir minha respiração na sua nuca. Eu estava sobre você enquanto esteve preso em estacas, e poderia ter esmagado seu pescoço ali mesmo, mas pensei melhor. Matá-lo enquanto dorme não me traria nenhum prazer. Quero senti-lo morrer. Quero que saiba que tirei sua vida.
Spider jogou uma pedra na direção de onde achava que vinha a voz e ouviu a pedra bater na grama sem ferir ninguém.
— Você tem dedos — continuava a voz —, mas eu tenho garras que são mais afiadas que facas. Você tem duas pernas, mas eu tenho quatro que nunca se cansam, que correm dez vezes mais rápido do que jamais correrá. Seus dentes podem mastigar carne se ela ficar macia e insípida pela ação do fogo, porque você tem dentinhos de macaco, bons para mastigar frutas macias e insetos que rastejam. Mas eu tenho dentes que arrancam e rasgam a carne viva dos seus ossos, e posso engolir enquanto o sangue vital ainda está jorrando.
Então Spider fez um barulho. Era um som que podia ser feito sem língua, sem nem mesmo abrir os lábios. Era um som de “pfff” de desdém, de chacota. E parecia dizer o seguinte: “Você pode ser todas essas coisas, Tigre, e daí? Todas as histórias que existem são de Anansi. Ninguém conta histórias do Tigre”.
Ouviu-se um rugido na escuridão, um rugido cheio de fúria e frustração.
Spider começou a fazer “hum-hum” com a melodia de “Tiger Rag”. E uma velha canção, ótima para atazanar tigres: “Pega aquele tigrinho, cadê o tigrinho?”, diz a letra.
Quando a voz ressoou na escuridão, estava mais próxima.
— Estou com a sua mulher, filho de Anansi. Quando acabar com você, rasgarei a carne dela. A carne dela sem dúvida terá um gosto mais doce que a sua. — Spider fez “humpf”, o som que as pessoas fazem quando sabem que ouvem uma mentira.
— O nome dela é Rosie.
Spider então soltou um som involuntário. Na escuridão, ouviu-se uma gargalhada.
— E quanto aos olhos... Você tem olhos que vêem o óbvio, à luz do dia, com sorte, enquanto os meus podem ver os pelinhos se arrepiarem no seu braço enquanto falo com você, ver o terror em seu rosto. E consigo ver tudo isso à noite. Tenha medo, filho de Anansi. Se tem alguma prece a fazer, faça agora.
Spider não tinha nenhuma prece, mas tinha pedras, e podia jogá-las. Talvez desse sorte e conseguisse acertar uma pedra no escuro. Spider sabia que seria um milagre se conseguisse, mas passara a vida inteira se valendo de milagres.
Pegou outra pedra.
Sentiu alguma coisa sobre sua mão.
“Oi”, disse a pequena aranha de argila, em sua mente.
“Oi”, pensou Spider. “Olha, eu estou meio ocupado aqui, tentando não ser devorado, então, se você puder ficar um pouquinho quieta.-”
“Mas eu as trouxe”, pensou a aranha. “Como você me pediu.”
“Como eu pedi?”
“Você me disse para buscar ajuda. Eu as trouxe comigo. Seguiram o meu fio de teia. Não há aranhas aqui, nesta criação, então eu saí e fiz teias daqui até lá. Depois voltei, com teias de novo, de lá para cá. Trouxe as guerreiras. Trouxe as mais valentes.”
— O que será que você está pensando agora? — perguntou a voz do grande felino, na escuridão. E completou, com certo refinamento no humor: — Qual o problema? O gato comeu sua língua?
Uma única aranha fica em silêncio. Aranhas cultivam o silêncio. Mesmo aquelas que fazem barulho normalmente permanecem o mais quietas que puderem, esperando. Esperar é basicamente o que as aranhas fazem.
A noite enchia-se lentamente de ruídos suaves sobre a relva.
Spider transmitiu mentalmente sua gratidão e orgulho à pequena aranha de sete patas que fizera com seu sangue, sua saliva e com a terra. A aranha saiu da sua mão com passinhos rápidos e foi até seu ombro.
Spider não podia vê-las, mas sabia que estavam todas ali: as grandes e pequenas aranhas, aranhas venenosas e aranhas que apenas picavam, aranhas grandes, peludas, e aranhas elegantes, quitinosas. Seus olhos absorviam o mínimo de luz que conseguiam encontrar, mas viam por meio de suas pernas, de suas patas, pegando as vibrações e juntando-as para formar uma imagem virtual do mundo ao redor.
Eram um exército.
O Tigre falou mais uma vez, na escuridão.
— Quando você estiver morto, filho de Anansi, quando a sua linhagem não existir mais, as histórias serão minhas. As pessoas ouvirão histórias do Tigre mais uma vez. Ficarão unidas e louvarão minha astúcia, minha força, minha crueldade, minha alegria. Todas as histórias serão minhas. Todas as canções. O mundo será como foi uma vez: um lugar difícil, um lugar obscuro.
Spider ouviu o rastejar de seu exército.
Havia um motivo para estar sentado perto do penhasco. Embora fosse um lugar que não lhe permitia uma saída, também significava que o Tigre não podia pular sobre ele, apenas chegar perto pelo chão.
Spider começou a rir.
— Do que está rindo, filho de Anansi? Ficou louco?
Com isso, Spider riu mais e mais alto.
Uma espécie de uivo soou na escuridão. O Tigre finalmente se deparara com o exército de Spider.
Há diferentes venenos de aranha. Muitas vezes, pode levar muito tempo até se descobrir os efeitos de uma picada. Os biólogos há anos pensam nisso. Há aranhas cuja picada pode fazer o lugar infectado apodrecer e morrer, muitas vezes, mais de um ano depois da picada. E por que as aranhas fazem isso? A resposta é simples. Acham isso divertido e não querem que você as esqueça jamais.
Picadas de viúvas-negras sobre o nariz ferido do Tigre, picadas de tarântulas em suas orelhas. Em poucos segundos, todos os locais sensíveis queimavam e pulsavam, inchados, coçando. O Tigre não sabia o que estava acontecendo: tudo o que ele percebia eram a queimação, a dor, o medo repentino.