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“Luz”, pensou Fat Charlie. Cantou alto, e todos os vaga-lumes daquele lugar ficaram à sua volta, acendendo-se e apagando-se com uma luz verde e fria. Com aquela luz, conseguia enxergar dois olhos maiores que pratos, que olhavam para ele de um rosto arrogante de réptil.

Ficou olhando para o ser.

— Boa noite — cumprimentou Fat Charlie com uma voz alegre.

— Olá. Ora, ora. Você tem cara de quem vai ser o meu jantar — disse a criatura com sua voz macia como seda.

— Meu nome é Charlie Nancy. Quem é você?

— Eu sou o Dragão. E vou te devorar numa abocanhada só, lentamente, ó homenzinho-de-chapéu.

Charlie piscou.

“O que o meu pai faria?”, pensou. “O que Spider faria?” Não tinha a menor idéia. “Ora, vamos. Afinal de contas, Spider meio que faz parte de mim. Posso fazer tudo o que ele pode.”

— Ahm... Você já está cansado de falar comigo. E vai me deixar seguir em frente, sem nenhum dano à minha pessoa — disse ao dragão do jeito mais convincente que conseguia.

— Uau. Bela tentativa. Mas acho que não vou, não — respondeu o dragão, com entusiasmo. — Na verdade, vou devorar você.

-Você não tem medo de limões, tem? — perguntou Fat Charlie, antes de lembrar que dera seu limão para Daisy. A criatura riu com desdém.

— Nada me dá medo.

— Nada?

— Nada.

— Nada te mata às, medo?

— É. Nada me mata de medo — admitiu o Dragão.

— Sabe, eu nada tenho aqui nos meus bolsos. Quer ver?

— Não — respondeu o Dragão, incomodado. — Não quero ver de jeito nenhum.

As asas bateram, fazendo um barulho semelhante ao de velas de um barco ao vento, e Charlie ficou sozinho na praia.

— Essa foi bem fácil.

Continuou a andar. Criou uma música para sua caminhada. Charlie sempre quisera criar músicas, mas nunca o fizera, em parte porque tinha certeza de que, se escrevesse uma música, alguém pediria a ele para cantá-la, e isso seria tão bom quanto morrer enforcado. Agora ligava cada vez menos para isso, e cantou sua música para os vagalumes, que o seguiam em sua caminhada. A canção falava sobre a Mulher Pássaro, sobre encontrar o seu irmão. Esperava que os vagalumes gostassem. A luz deles parecia pulsar e brilhar no ritmo da música.

A Mulher Pássaro esperava por ele no topo do morro.

Charlie tirou o chapéu. Puxou a pena presa à faixa.

— Toma. Acho que isso é seu. — Ela não fez nenhum movimento para pegar a pena. — Nosso trato acabou. Trouxe a sua pena. Eu quero o meu irmão. Você o levou. Quero ele de volta. Não tenho permissão para dar a outra pessoa a linhagem de Anansi.

— E se o seu irmão não estiver mais comigo?

Era difícil discernir, naquela luz dos vagalumes, mas Charlie achou que os lábios dela não tinham se movido. As palavras o cercaram por meio dos gritos dos noitibós, nos “u-úúú” das corujas.

— Quero o meu irmão de volta. E inteirinho, são e salvo. E quero que me traga ele agora. Senão tudo o que aconteceu entre você e o meu pai durante todos aqueles anos será apenas o prelúdio. Você sabe. Só o começo.

Charlie nunca ameaçara ninguém antes. Não tinha a mínima idéia de como levaria a cabo suas ameaças, mas não tinha nenhuma dúvida de que o faria.

— Eu estava com ele — respondeu ela, com o som distante de uma garça. — Mas o deixei, sem a língua, no mundo do Tigre. Eu não poderia causar dano à linhagem de seu pai. O Tigre, sim, assim que tivesse coragem.

Ela fez “shhhhh”. As rãs e os pássaros noturnos ficaram totalmente em silêncio. Olhou para ele, impassiva, o rosto quase como se fizesse parte das sombras. Pôs a mão no bolso do casaco.

— Dê-me a pena.

Charlie colocou a pena em sua mão.

Ele se sentiu mais leve, como se ela tivesse tirado dele mais do que uma simples pena.

Então ela colocou algo em sua mão. Algo frio, úmido. Parecia um pedaço de carne. Charlie teve que reprimir a vontade de fazer um movimento com a mão para jogar aquilo fora.

— Dê isso a ele — disse ela com a voz da noite. — Agora estamos quites.

— Como eu chego ao mundo do Tigre?

— Como você chegou até aqui? — perguntou ela num tom de quem parecia achar graça. A escuridão da noite agora era completa, e Charlie estava sozinho sobre o morro.

Abriu a mão e olhou para o pedaço de carne, mole e estriado. Parecia uma língua, e ele sabia de quem deveria ser.

Colocou o chapéu de volta na cabeça e pensou: “Pondo o meu capacete de raciocínio”. Enquanto pensava, não pareceu tão engraçado. O panamá verde não era um capacete que ajudava a pensar. Era o tipo de chapéu que deveria ser usado por alguém que não apenas pensava, mas também chegava a conclusões importantes e vitais.

Imaginou os mundos como se fossem uma teia. Ela brilhava em sua mente, conectando-o a todas as pessoas que conhecia. O fio que o conectava a Spider era forte e brilhante, e emitia uma luz fria, como se fosse um vagalume ou uma estrela.

Spider já fizera parte dele. Concentrou-se nesse pensamento e deixou que a teia preenchesse sua mente. Sobre sua mão estava a língua do irmão. Aquilo fizera parte de Spider até pouco tempo antes e desejava intensamente voltar a ser parte dele. Coisas vivas têm memória.

A luz insana da teia brilhava ao seu redor. Tudo o que Charlie precisava fazer era segui-la.

Ele a seguiu, e os vagalumes ficavam juntinhos ao seu redor, viajando com ele.

— Ei, sou eu — disse Charlie.

Spider emitiu um som pequeno, horrível.

Sob a luz dos vagalumes, Spider tinha uma péssima aparência. A aparência de alguém que fora caçado, que estava ferido. Havia sangue coagulado em seu rosto e em seu peito.

— Acho que isto aqui talvez seja seu.

Spider pegou a língua com um gesto exagerado de gratidão, colocou-a na boca, empurrou-a e segurou firme. Charlie observava, esperando. Logo Spider parecia satisfeito. Experimentou mexer a boca, empurrando a língua de um lado para o outro, como se estivesse se preparando para raspar o bigode, abrindo bem a boca e movimentando a língua. Fechou a boca e se levantou. Finalmente, numa voz ainda meio mole, disse:

— Bonito chapéu.

Rosie alcançou primeiro o topo da escada e empurrou a porta da adega. Saiu tropeçando para dentro da casa. Esperou pela mãe, bateu e fechou os ferrolhos da porta da adega. As luzes não funcionavam, mas a lua estava alta, quase cheia. Depois de toda aquela escuridão, a luz pálida da lua que atravessava as janelas da cozinha era praticamente uma inundação de luz.

“Meninos e meninas, venham brincar a noite está clara com a luz do luar..” Rosie lembrou-se de uma rima de sua infância.

— Liga pra polícia — sugeriu sua mãe.

— Onde fica o telefone?

— Como é que eu vou saber onde fica o telefone? Ele ainda está lá embaixo.

-Tá bem — disse Rosie, pensando se deveria achar um telefone para ligar para a polícia ou simplesmente sair da casa. Antes que chegasse a uma decisão, era tarde demais.

Ouviu-se um barulho tão alto que fazia doer os ouvidos. Então a porta que dava para o porão foi arrombada.

Uma sombra saiu de lá.

Era real. Ela sabia que era real. Podia vê-lo. Mas parecia impossíveclass="underline" era a sombra de um felino selvagem, peludo, enorme. Estranhamente, quando a luz da lua a tocava, a sombra parecia mais escura. Rosie não conseguia ver os olhos, mas sabia que aquilo estava olhando para ela. E que estava com fome.

O felino iria matá-la. Tudo acabaria.

A mãe disse:

— Ele quer você, Rosie.

— Eu sei.

Rosie apanhou o objeto grande mais próximo, um bloco de madeira, um suporte para facas agora vazio. Jogou na direção da sombra com o máximo de força que podia. Sem esperar para ver se atingira o animal, ela saiu o mais rápido que podia da cozinha, em direção ao corredor. Sabia onde ficava a porta da frente...

Algo sombrio, algo de quatro patas, movia-se mais rápido: pulou por sobre sua cabeça e aterrissou quase silenciosamente à sua frente.