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O olhar nervoso de Charlie varreu a encosta da montanha e as cavernas, vendo cada uma das centenas de criaturas, totens que existiam antes do começo de tudo. Havia uma figura que não vira da última vez, e que olhou para eles: um homem pequeno, com luvas verde-limão e um bigodinho fino, mas sem chapéu panamá para cobrir seu cabelo já ralo.

Quando Fat Charlie olhou para ele, o velho piscou.

Não era muito, mas foi o suficiente.

Charlie encheu os pulmões e começou a cantar. “Meu nome é Charlie”, cantou. “Sou filho de Anansi. Ouçam a minha canção. Ouçam a minha vida.”

Cantou para eles a música sobre o menino que era metade deus e metade gente e foi dividido em dois por uma velha ressentida. Cantou sobre o pai, cantou sobre a mãe.

Cantou sobre nomes, palavras, as estruturas sob a realidade, os mundos que faziam os mundos, as verdades por trás de como as coisas são. Cantou a respeito do destino adequado e de fins justos para aqueles que o machucassem ou machucassem sua família.

Cantou o mundo.

Era uma boa música, e era a sua música. Algumas vezes havia palavras, outras não se ouvia palavra alguma.

Enquanto cantava, todas as criaturas que o ouviam começaram a bater palmas, a bater os pés e a cantarolar junto. Charlie sentia-se como um fio condutor para uma fantástica canção que englobava a todos. Cantou sobre os pássaros, sobre a magia que era olhar para cima e vê-los voando, e o brilho do sol sobre a pena de uma asa à luz da manhã.

Os totens agora dançavam, cada um fazendo a dança de sua espécie. A Mulher Pássaro fazia os passos da dança arrastada dos pássaros, exibindo as penas da cauda, jogando a cabeça para trás.

Havia uma única criatura perto da montanha que não dançava.

O Tigre agitava a cauda. Não batia palmas, não cantava nem dançava. Seu rosto estava roxo, ferido, e seu corpo, coberto de picadas e pontos inchados. Ele desceu com passos de veludo pelas pedras, um passo de cada vez, até ficar perto de Charlie.

— As músicas não são suas — grunhiu.

Charlie olhou para ele e começou a cantar sobre o Tigre, sobre Grahame Coats, sobre aqueles que faziam dos inocentes suas vítimas. Virou-se e viu Spider olhando para ele com admiração. O Tigre rugiu de raiva. Charlie pegou o rugido e o cobriu com sua canção. Então ele mesmo rugiu, exatamente como o Tigre. Bom, o rugido começou exatamente como o rugido do Tigre, mas então Charlie o modificou, de modo a fazer dele um rugido abobalhado. Todas as criaturas que observavam sobre as pedras começaram a rir. Era impossível não rir. Charlie fez o rugido abobalhado de novo. Como toda imitação, como toda caricatura perfeita, isso teve o efeito de tornar aquilo que imitava intrinsecamente ridículo. Ninguém jamais ouviria o Tigre rugir de novo sem ouvir o rugido do Charlie junto. “Que rugido mais abobalhado!”, diriam.

O Tigre deu as costas para Charlie. Andou com passos rápidos pela multidão, rugindo enquanto corria, o que apenas provocou risos ainda mais altos. O Tigre voltou para sua caverna, aborrecido. Spider fez um gesto com as mãos, um movimento rápido. Ouviu-se um som de pedras rolando, e a entrada da caverna do Tigre ficou coberta com as pedras que caíram. Spider pareceu satisfeito. Charlie continuou a cantar.

Cantou sobre Rosie Noah e a também a canção da mãe de Rosie: cantou desejando uma longa vida para a Sra. Noah e também toda a felicidade que ela merecia.

Cantou sobre sua vida, sobre a vida de todos eles. Em sua canção, viu o modo de vida que levavam como se fosse uma teia em que caíra uma mosca. Com sua canção, envolveu a mosca, impedindo-a de fugir, enquanto consertava a teia com novos fios. Agora a canção chegava, em seu ritmo natural, ao fim. Charlie deu-se conta, muito surpreso, de que gostou de cantar para outras pessoas. Naquele momento soube que aquilo era o que ele faria pelo resto da vida. Ele cantaria. Não canções grandes e mágicas, que criavam mundos ou recriavam a existência, mas canções pequenas, que deixariam as pessoas felizes por algum tempo, que as fariam dançar e se esquecer, mesmo que por pouco tempo, de seus problemas. Ele sabia que sempre teria medo antes de cantar. O medo de subir num palco, que nunca iria embora. Mas também compreendeu que seria como pular dentro de uma piscina: a água seria fria e desagradável apenas por alguns segundos, mas o desconforto passaria e ele se sentiria bem...

Nunca tão bem assim. Nunca mais. Mas se sentiria bem, sem dúvida.

Então ele terminou. Charlie abaixou a cabeça. As criaturas sobre o penhasco deixaram as últimas notas morrerem no ar. Pararam de bater os pés, pararam de bater palmas, pararam de dançar. Charlie tirou o chapéu verde de seu pai e com ele abanou o rosto.

Spider sussurrou:

— Isso foi fantástico.

— Você poderia ter feito a mesma coisa — observou Charlie. — Acho que não. O que estava acontecendo, afinal? Senti como se você estivesse fazendo alguma coisa, mas não consegui descobrir o quê.

— Eu resolvi as coisas. Para a gente. Eu acho. Não tenho certeza— E não tinha mesmo. Agora que a música acabara, o conteúdo da letra se dissipava, como um sonho pela manhã.

Apontou para a boca da caverna que estava bloqueada pelas pedras.

— Foi você que fez aquilo?

— Sim — respondeu Spider. — Achei que era o mínimo que eu poderia fazer. Mas o Tigre alguma hora vai conseguir sair. Eu queria ter feito algo pior do que deixá-lo preso, pra falar a verdade.

— Não se preocupe. Eu fiz algo bem pior.

Observou enquanto os animais se dispersavam. O pai não estava lá, e isso não o surpreendeu.

— Vamos. Precisamos voltar.

Spider voltou ao hospital para ver Rosie no horário de visitas. Levava consigo uma caixa grande de bombons, a maior que conseguira comprar na lojinha de presentes do hospital.

— Pra você.

— Obrigada.

— Disseram que talvez a minha mãe sobreviva. Parece que ela abriu os olhos e pediu mingau. O médico disse que é um milagre.

— Sim. A sua mãe pedindo comida. Parece um milagre, sem dúvida.

Rosie deu um tapa no braço dele, aproveitando para deixar a mão ali mesmo.

— Sabe — começou após alguns instantes —, talvez você ache isso bobo. Mas quando eu estava lá, no escuro, com a minha mãe, achei que você estava me ajudando. Eu senti como se você estivesse afastando a fera. Que, se você não tivesse feito o que quer que fez, ela teria nos matado.

— E... talvez eu tenha ajudado.

— Sério?

— Eu não sei. Acho que sim. Eu também estava em apuros, e aí pensei em você.

— Situação muito complicada?

— Sim. Muito.

— Será que você pode me servir um copo d’água, por favor?

Ele serviu.

— Spider...O que você faz?

— O que eu faço?

— Pra ganhar a vida.

— Ah, o que eu estiver a fim de fazer.

— Acho que vou ficar aqui mais um tempo. As enfermeiras dizem que precisam muito de professores na ilha. Eu gostaria de fazer alguma diferença.

— Pode ser divertido.

— E o que você faria se eu ficasse?

— Ah... Bom, se você ficasse por aqui, eu certamente acharia alguma coisa para me manter ocupado.

Os dois entrelaçaram os dedos, deixando as mãos tão apertadas quanto um nó de marinheiro.

— Você acha que a gente vai dar certo?

— Acho que sim — respondeu Spider, sério. — E, se eu me encher de você, posso ir embora e arranjar outra coisa pra fazer. Então não se preocupe.

— Ah. Não estou preocupada.

E não estava. Por baixo da doçura em sua voz, havia uma dureza de aço. Dava pra ver de onde vinha a dureza de sua mãe.

Charlie encontrou Daisy na praia, numa cadeira de praia. Pensou que ela tivesse adormecido ao sol. Quando sua sombra a cobriu, ela disse:

— Oi, Charlie.

Não abriu os olhos.

— Como você sabia que era eu?

— O seu chapéu tem cheiro de charuto. Você vai se livrar dele rapidinho, né?

— Não. Eu já falei. E herança de família. Quero usá-lo até morrer, e depois deixar para os meus filhos. E então... Você ainda tem o seu emprego como policial?