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Podia ouvir Callyanne Higgler gemendo e chorando acima dele. Então ela parou de soluçar, o suficiente para anunciar:

— Mesmo assim, não dá pra dizer que ela não teve uma vida longa e próspera. Essa mulher morreu aos 103 anos de idade.

— Cento e quatro! — corrigiu uma voz irritada, vinda do solo, perto dele.

O sr. Nancy esticou um braço imaterial e bateu na lateral do caixão novo.

— Fica quieta, mulher! Tem gente aqui querendo dormir.

Rosie deixou bem claro para Spider que esperava que ele tivesse um emprego fixo, do tipo que obriga a pessoa a acordar cedo e ir trabalhar.

Então, certa manhã, um dia antes de Rosie receber alta do hospital, Spider levantou-se bem cedo e foi até a biblioteca municipal. Acessou o computador, passeou pela Internet e, muito cuidadosamente, apagou as contas bancárias restantes de Grahame Coats. Aquelas que a polícia de diferentes continentes até o momento não conseguira encontrar. Pôs a fazenda de criação na Argentina à venda. Comprou uma pequena empresa já pronta, investiu algum dinheiro e preencheu o formulário para pedir empréstimo do governo. Enviou um e-mail no nome de Roger Bronstein contratando um advogado para administrar seus negócios, e sugeriu que entrasse em contato com a Sra. Rosie Noah, de Londres, mas atualmente residindo em Saint Andrews, e a contratasse para a parte filantrópica.

Rosie foi contratada. Sua primeira tarefa foi encontrar um lugar para o escritório.

Depois disso, Spider passou quatro dias inteiros caminhando pela praia (dormindo à noite) que circundava grande parte da ilha, experimentando a comida de cada um dos lugarzinhos que encontrava no caminho até chegar ao Dawsons Fish Shack. Experimentou o peixe-voador frito, os figos verdes aferventados, o frango grelhado e a torta de coco. Foi até a cozinha falar com o chef, que era o dono do lugar, e ofereceu-lhe dinheiro suficiente para ser seu sócio e para ter com ele aulas de culinária.

Agora o Dawsons Fish Shack é um restaurante, e o sr. Dawson aposentou-se. Algumas vezes Spider fica lá na frente; outras, na cozinha. Se você entrar lá e procurar por ele, irá encontrá-lo. A comida é a melhor da ilha. Ele está mais gordo do que antes, mas não tão gordo quanto ficará se continuar a provar tudo o que cozinha.

Não que Rosie se importe.

Ela dá aulas, ajuda um pouco, faz muita caridade e, se sente falta de Londres, não dá mostras disso. A mãe de Rosie, por outro lado, sente falta de Londres o tempo todo, e faz questão de dizer, mas encara qualquer sugestão de que talvez deva voltar para lá como uma tentativa de separá-la de seus netos ainda não nascidos (e, aliás, nem mesmo concebidos).

Nada daria a este autor um prazer maior do que assegurar ao leitor que, depois de voltar do vale da sombra da morte, a mãe de Rosie era outra pessoa: uma mulher alegre, sempre gentil com todos, e que sua vontade de comer só competia com sua vontade de viver a vida com tudo a que tinha direito. Mas o respeito pela verdade nos impede de ser desonestos, e a verdade é que, quando saiu do hospital, a mãe de Rosie ainda era ela mesma, tão desconfiada e egoísta como sempre fora, embora bem mais frágil, e agora com a mania de dormir de luz acesa.

Anunciou que venderia seu apartamento em Londres e se mudaria para onde quer que Spider e Rosie fossem para ficar perto dos netos. À medida que o tempo passava, começava a tecer comentários afiados sobre a inexistência de netos, sobre a quantidade e qualidade dos espermatozóides de Spider, sobre a freqüência e as posições das relações sexuais entre os dois e sobre como a fertilização in vitro era fácil, e nem era tão cara, até o ponto em que Spider começou a pensar seriamente em nunca mais fazer sexo com Rosie só para irritar sua mãe. Pensou nisso por uns dez segundos, certa tarde, enquanto a mãe de Rosie dava a eles fotocópias de uma artigo de revista o qual sugeria que Rosie deveria ficar de cabeça para baixo por meia hora depois de fazer sexo. Ele mencionou a Rosie, naquela noite, o que pensara, e ela riu e lhe disse que, de qualquer maneira, a sua mãe não poderia entrar no quarto deles, e que de jeito nenhum ela ficaria de cabeça para baixo depois de fazer amor.

A Sra. Noah agora tem um apartamento em Williamstown, perto da casa de Spider e de Rosie. Duas vezes por semana, uma das muitas sobrinhas de Callyanne Higgler dá uma olhadinha nela, passa o aspirador na casa, espana as frutas de vidro (as de cera derreteram no calor da ilha), faz um pouco de comida e deixa na geladeira. Às vezes a mãe de Rosie come, outras vezes não.

Charlie hoje em dia é cantor. Perdeu muito das gordurinhas que tinha. Agora é um homem magro, elegante, e sua marca registrada é um chapéu panamá. Ele tem diversos chapéus panamás, de cores diferentes. Seu favorito é um verde.

Charlie tem um filho. Seu nome é Marcus. Tem 4 anos e meio e aquele ar sério e pensativo que só as criancinhas e gorilas da montanha são capazes de fazer.

Ninguém mais chama Charlie de “Fat Charlie” e, para falar verdade, às vezes ele sente falta disso.

Era uma manhã de verão, bem cedo, e já estava claro. Já era possível ouvir ruídos vindo do quarto ao lado. Charlie deixou Daisy dormindo. Saiu com cuidado da cama, pegou uma camiseta e um short e foi até a outra porta para ver o filho nu, no chão, brincando com um trenzinho de madeira. Puseram juntos suas camisetas, shorts e chinelos. Charlie pôs um chapéu. Eles foram até a praia.

— Papai — começou o menino. Sua mandíbula estava meio mole, e ele parecia pensar em alguma coisa.

— Sim, Marcus?

— Quem foi o presidente mais “curtinho”?

— Curtinho em altura, você quer dizer?

— Não. Em— dias. Quem foi menos tempo presidente.

— Harrison. Ele pegou pneumonia na posse e morreu. Foi presidente por quarenta e poucos dias, e passou grande parte do mandato morrendo.

— Ah. E quem foi mais tempo presidente?

— Franklin Delano Roosevelt. Ele teve três mandatos completos. Morreu no quarto. Vamos tirar os sapatos.

Colocaram os sapatos numa pedra e continuaram a caminhar em direção às ondas, os dedos sendo engolidos pela areia úmida.

— Como é que você sabe tanto sobre os presidentes?

— O meu pai achou que seria bom eu saber tudo sobre eles quando eu era criança.

— Ah.

Andaram dentro da água, na direção de uma pedra que podia ser vista na maré baixa. Depois de um tempo andando, Charlie pegou o menino e o pôs nos ombros.

— Papai?

— Sim, Marcus.

— A Piscila falou que você é famoso.

— E quem é Priscila?

— Da escola. Ela diz que a mãe dela tem todos os seus CDs. Ela diz que adora as suas músicas.

— Ah..

— E você é famoso?

— Não muito. Um pouquinho.

Colocou Marcus sobre a pedra e depois subiu nela.

— Pronto. Preparado pra cantar?

— To.

— E o que você quer cantar?

— A minha canção favorita.

— Não sei se ela vai gostar.

— Ela vai, sim.

Marcus tinha a autoconfiança dos muros, das montanhas.

— Ok. Um, dois, três...

Cantaram juntos “Yellow Bird”, que era a música favorita de Marcus naquela semana. Depois cantaram “Zombie Jamboree”, que era a segunda preferida. Depois “She’ll Be Corning Round the Mountain”, que era a terceira preferida. Marcus, que enxergava melhor que Charlie, pôde vê-la quando terminavam “She’11 Be Corning Round the Mountain” e começou a acenar.

— Olha lá ela, papai.

— Tem certeza? — A névoa da manhã tornava o céu e o mar um único borrão pálido. Charlie ficou olhando, com olhos apertados, para o horizonte. — Não to vendo nada.

— Ela mergulhou na água. Tá vindo pra cá.

Ouviu-se um “splash” na água, e ela surgiu bem abaixo deles. Deu um salto, requebrou e já estava sentada sobre a pedra, ao lado deles, com sua cauda prateada pendurada no Atlântico. Tinha gotículas brilhantes de água sobre as escamas. Seus cabelos eram vermelho-alaranjados, compridos.