— Onde cê vai dormir hoje? — perguntou a Sra. Higgler.
— Pensei em ficar num quarto de hotel barato — respondeu Fat Charlie.
— Ora, cê tem um ótimo quarto aqui. E uma ótima casa, descendo a rua. Cê nem viu a casa ainda. Se quer saber, o teu pai ia querer que cê ficasse lá.
— Acho que prefiro ficar sozinho. Não me sinto muito bem com a idéia de dormir na casa do meu pai.
— Bom, não é o meu dinheiro que tá sendo jogado fora — respondeu a Sra. Higgler. — Cê vai ter que decidir o que fazer com a casa, de qualquer jeito. E com todas as coisas dele.
— Eu não estou nem aí pra isso. A gente pode fazer um bazar e vender tudo. Vender pelo eBay. Jogar tudo fora.
— Ora, mas que atitude é essa? — Ela vasculhou uma gaveta da cozinha e pegou uma chave presa a uma grande etiqueta de papel.
— Ele me deu a chave reserva quando se mudou. Caso perdesse a dele ou ficasse trancado do lado de fora, sei lá. Costumava dizer que, se a cabeça não estivesse pregada no pescoço, esqueceria em algum lugar. Quando vendeu a casa ao lado, ele me disse: “Não se preocupe, Callyanne, eu não vou pra muito longe”. Ele morou naquela casa desde sempre, pelo que me lembro, mas decidiu que era grande demais e que tinha que ir embora...
Ainda falando, ela o acompanhou até o lado de fora da casa e percorreu com ele várias ruas em sua perua vermelho-escura até chegarem a uma casa térrea de madeira.
Ela abriu a porta da frente e eles entraram.
O cheiro era familiar: levemente doce, como se biscoitos de chocolate tivessem acabado de sair do forno da última vez que usaram a cozinha, mas isso acontecera havia muito tempo. Fazia muito calor ali dentro. A Sra. Higgler o levou até a pequena sala de estar e ligou um aparelho de ar-condicionado acoplado a uma janela. O aparelho chacoalhava e fazia barulho, tinha cheiro de cachorro molhado e movimentou o ar quente.
Havia pilhas de livros em torno de um sofá muito velho, do qual Fat Charlie se lembrava, e havia fotografias em porta-retratos — em uma delas, em preto-e-branco, via-se a mãe de Fat Charlie quando jovem, com o cabelo preso no alto da cabeça, preto e brilhante, usando um vestido brilhoso. Ao lado dela, uma foto do próprio Fat Charlie, com uns 5 ou 6 anos de idade, de pé ao lado de uma porta com espelho, de modo que, à primeira vista, parecia que dois pequenos Fat Charlie, um do lado do outro, olhavam de um jeito sério para quem observava a fotografia.
Fat Charlie pegou o livro em cima da pilha. Era sobre arquitetura italiana.
— Ele se interessava por arquitetura?
— Era louco por arquitetura. Ah, se era.
— Eu não sabia.
A Sra. Higgler deu de ombros e tomou um gole do café. Fat Charlie abriu o livro e viu o nome do pai escrito com capricho na primeira página. Fechou o livro.
— Eu nunca soube quem ele era. Não de verdade.
— Ele não era um homem fácil de se conhecer. Eu o conhecia há, sei lá, uns 60 anos. E nunca soube quem ele era de verdade.
— A senhora devia saber como ele era quando criança.
A Sra. Higgler hesitou. Parecia tentar se lembrar. Então disse, de um jeito calmo:
— Eu conheci ele na época em que era moça.
Fat Charlie achou que deveria mudar de assunto, e então apontou a foto da mãe.
— Ele tem uma foto da minha mãe ali.
A Sra. Higgler tomou outro gole de café.
— Tiraram num barco. Antes de você nascer. Um daqueles barcos em que se podia jantar, navegar uns cinco quilômetros, para bem longe, e onde tinha muita jogatina. Depois voltavam. Não sei se ainda existe esse tipo de barco. Sua mãe dizia que foi a primeira vez que ela comeu carne. — Fat Charlie tentou imaginar como eram seus pais antes de ele nascer. — Ele sempre foi um homem bonito — observou a Sra. Higgler, pensativa, como se adivinhasse o que ele pensava. — Até o fim. Tinha um sorriso capaz de fazer uma moça ficar sem graça. E sempre se vestia muito bem. Todas as moças gostavam dele.
Fat Charlie sabia a resposta antes mesmo de fazer a pergunta.
— A senhora e ele?
— Como é que cê faz uma pergunta dessas para uma viúva de respeito? — Ela deu um golinho no café. Fat Charlie esperou pela resposta. Então ela disse: — Eu beijei ele uma vez. Há muito, muito tempo, antes mesmo de ele conhecer a sua mãe. Ele beijava muito bem. Eu esperava que ele me ligasse, que me chamasse pra sair pra dançar de novo, mas ele desapareceu. Desapareceu por mais ou menos um ano. Dois anos, talvez. E quando voltou eu já estava casada com o meu marido, o sr. Higgler, e ele trouxe a sua mãe. Conheceu ela nas ilhas.
— A senhora ficou chateada?
— Eu era uma mulher casada. — Outro gole de café. — E não dava para odiar o teu pai. Ninguém ficava bravo de verdade com ele. E o jeito como olhava pra ela... Ah, se alguma vez olhasse assim pra mim, eu morreria feliz. Sabia que no casamento deles eu fui a madrinha da sua mãe?
— Eu não sabia.
O aparelho de ar-condicionado começava a expelir ar frio. Continuava com cheiro de cachorro molhado. Fat Charlie perguntou:
— A senhora acha que eles foram felizes?
— No começo. — Ela ergueu sua enorme caneca térmica e ia tomar um gole do café, mas mudou de idéia. — Só no começo. Nem mesmo ela conseguia prender a atenção dele por muito tempo. Ele tinha muitas coisas pra fazer. Era um homem muito ocupado, o teu pai.
Fat Charlie tentou descobrir se a Sra. Higgler estava brincando ou não. Não saberia dizer. Mas ela não riu.
— Muitas coisas a fazer? Tipo o quê? Pescar numa ponte? Jogar dominó na varanda? Esperar a inevitável invenção do karaokê?
Ele não tinha nada pra fazer. Acho que nunca trabalhou um só dia na vida.
— Você não devia falar assim do teu pai!
— Mas é verdade. Ele não prestava. Era um péssimo marido e um péssimo pai.
— Claro que era! — concordou a Sra. Higgler, com raiva. — Mas não dá pra julgar ele como se julga um homem qualquer. Você tem que levar em conta que o seu pai era um deus, Fat Charlie.
— Um deus entre os homens?
— Não. Só um deus, só isso. — Ela disse a frase sem nenhuma ênfase, de um jeito tão trivial e normal como se tivesse dito que “ele era diabético” ou simplesmente que “ele era negro”.
Fat Charlie quis fazer uma piada, mas viu o olhar da Sra. Higgler. Subitamente não conseguia pensar em nada engraçado para dizer. Então disse delicadamente:
— Ele não era um deus. Deuses são especiais, míticos. Eles operam milagres e coisa do tipo.
— Isso mesmo. Ele não teria te contado enquanto estava vivo, mas agora que se foi não tem problema.
— Ele não era um deus. Era o meu pai.
— Dá para ser as duas coisas — argumentou a Sra. Higgler. — Acontece.
“É o mesmo que discutir com um louco” pensou Fat Charlie. Percebeu que o melhor a fazer era ficar calado, mas sua boca não obedecia. Naquele momento, dizia o seguinte:
— Olha, se o meu pai era um deus, ele devia ter poderes divinos.
— E tinha. Não fazia muita coisa com eles, é verdade. Mas era velho. De qualquer maneira, como cê acha que ele nunca precisava trabalhar? Sempre que precisava de dinheiro, ele jogava na loteria ou ia até Halendale para apostar nos cavalos ou nos cachorros. Nunca ganhava demais, para não chamar atenção. Só o suficiente para sobreviver.
Fat Charlie nunca ganhara nada em toda sua vida. Nada mesmo. Nas diversas vezes que participara de um “bolão” no trabalho, apostava que seu cavalo jamais passaria do portão de saída ou que seu time seria rebaixado para uma divisão da qual ninguém ouviu falar, uma espécie de limbo do mundo do esporte profissional. Era irritante.
— Se meu pai era um deus, algo em que aliás não acredito de jeito nenhum, então por que eu não sou um deus também? Afinal, você está dizendo que eu sou filho de um deus, não é?
— Claro.
— Bom, então por que eu não aposto no cavalo vencedor, não tenho poderes mágicos nem faço milagres ou coisa do tipo?
Ela deu uma fungada.
— O seu irmão foi quem herdou toda essa coisa de ser deus.