— Você ficou escutando por algum tempo o que ele dizia?
— Não muito. Cheguei quando ele estava te interrogando sobre o que havia acontecido a Harriet, pouco antes de te suspender como um porco. Me afastei só por um minuto e subi para buscar uma arma. Encontrei o taco golfe num armário.
— Martin Vanger não tinha a menor ideia do que aconteceu a Harriet.
— E você acredita?
— Sim — disse Mikael sem hesitar. — Martin estava mais enlouquecido do que uma doninha furiosa... não sei de onde me veio essa imagem... mas ele admitiu todos os crimes que cometeu. Falava à vontade. Tive até a impressão de que queria me impressionar. Mas, no que se refere a Harriet, estava tão desesperadamente em busca da verdade quanto Henrik Vanger.
— E então... isso nos leva aonde?
— Sabemos que Gottfried estava por trás da primeira série de assassinatos, entre 1949 e 1965.
— Certo. E que ele iniciou Martin.
— Estamos falando de uma família com problemas — disse Mikael. — Na verdade, Martin não tinha chance nenhuma.
Lisbeth Salander lançou um olhar estranho a Mikael.
— O que Martin me contou, embora aos pedaços, é que o pai começou a iniciá-lo na época da puberdade. Ele assistiu ao assassinato de Lea em Uddevalla, em 1962. Na época tinha catorze anos. Assistiu ao assassinato de Sara, em 1964. Dessa vez participou ativamente. Tinha dezesseis anos.
— E?
— Ele me disse que não era homossexual e que nunca havia tocado um homem, exceto o pai. Isso me faz pensar... bem, a única conclusão que se pode tirar é que o pai o violentava. Os abusos sexuais devem ter prosseguido por muito tempo. Ele foi iniciado, por assim dizer, pelo pai.
— Você está dizendo bobagem — falou Lisbeth Salander.
Sua voz de repente ficou dura como pedra. Mikael olhou para ela surpreso. Havia algo de inflexível no olhar dela, sem a menor compaixão.
— Martin poderia resistir como qualquer outra pessoa. Ele fez sua escolha. Matava e violentava porque gostava disso.
— Concordo. Mas Martin era um menino maltratado, influenciado pelo pai, assim como Gottfried foi maltratado pelo seu pai nazista.
— Ah, sei, você parte do princípio de que Martin não tinha vontade própria e que as pessoas se tornam aquilo para o qual foram educadas.
Mikael sorriu prudentemente.
— E um ponto sensível para você?
Os olhos de Lisbeth flamejaram numa súbita cólera contida. Mikael prosseguiu rápido.
— Não estou afirmando que as pessoas são influenciadas apenas pela educação que recebem, mas acho que ela desempenha um papel importante. O pai de Gottfried o espancou, e seriamente, por anos e anos. Isso deixa marcas.
— Você está dizendo bobagem — repetiu Lisbeth. — Gottfried não foi o único coitado no mundo a ter sido surrado. O que também não lhe dava carta branca para assassinar mulheres. Foi uma escolha que ele mesmo fez. E isso também vale para Martin.
Mikael ergueu uma mão.
— Não vamos discutir.
— Não estou discutindo. Simplesmente acho patético que sempre concedam circunstâncias atenuantes aos canalhas.
— Concordo. Eles têm mesmo uma responsabilidade pessoal. Passaremos isso a limpo depois. O fato é que Gottfried morreu quando Martin tinha dezessete anos e ele ficou sem ninguém para guiá-lo. Tentou prosseguir nas pegadas do pai. Fevereiro de 1966, Uppsala.
Mikael inclinou-se para pegar um dos cigarros de Lisbeth.
— Não vou nem começar a especular sobre que pulsões Gottfried estava tentando satisfazer, nem de que maneira interpretava seus atos. Ele se apoiou numa algaravia bíblica que um psiquiatra, talvez, pudesse esclarecer que fala de castigos e de purificação num sentido ou noutro. Não importa. Ele era um assassino serial.
Refletiu um segundo antes de continuar.
— Gottfried queria matar mulheres e revestia os crimes numa espécie de raciocínio pseudo-religioso. Mas Martin nem sequer fingia ter uma desculpa. Era organizado e matava de maneira sistemática. Além disso, tinha dinheiro para se dedicar a seu hobby. E era mais astuto que o pai. Toda vez que Gottfried deixava para trás um cadáver, isso significava um inquérito policial e o risco de alguém chegar até ele, ou pelo menos de fazer a ligação entre os diferentes assassinatos.
— Martin Vanger mandou construir sua casa nos anos 1970 — disse Lisbeth pensativamente.
— Acho que Henrik disse 1978. Ele provavelmente encomendou um porão de segurança para arquivos importantes ou algo do gênero. Obteve uma peça à prova de som, sem janelas e com uma porta blindada.
— Usou esse lugar por vinte e cinco anos.
Calaram-se por alguns momentos e Mikael pensou que atrocidades não teriam se passado naquela idílica ilha de Hedeby durante um quarto de século. Lisbeth não precisou imaginar; tinha visto a coleção de vídeos. Ela percebeu que Mikael tocava involuntariamente o próprio pescoço.
— Gottfried odiava as mulheres e ensinou o filho a também odiar as mulheres, enquanto o violentava. Mas havia algo mais... acho que Gottfried imaginava que os filhos deviam compartilhar sua visão pervertida do mundo, para dizer o mínimo. Quando perguntei a Martin sobre Harriet, sua própria irmã, ele disse: Tentamos convencê-la. Mas ela não passava de uma putinha ordinária. Estava planejando avisar Henrik.
Lisbeth assentiu com a cabeça.
— Eu ouvi. Foi mais ou menos nesse momento que eu cheguei ao porão. Isso significa que agora conhecemos o motivo da misteriosa conversa que ela queria ter com Henrik.
Mikael franziu a testa.
— Não exatamente. Pense na cronologia dos fatos. Não sabemos quando Gottfried violentou o filho pela primeira vez, mas ele levou Martin a Uddevalla para matar Lea Persson em 1962. Gottfried afogou-se em 1965. Antes disso, ele e Martin haviam tentado convencer Harriet. O que se pode deduzir daí?
— Que Gottfried não violentou apenas Martin. Ele atacou também Harriet.
Mikael assentiu com a cabeça.
— Gottfried era o professor, Martin o aluno. E Harriet era o joguete dos dois, digamos assim.
— Gottfried ensinou Martin a ter intimidades com a irmã. — Lisbeth mostrou as fotos polaróide. — É difícil determinar a atitude dela por essas duas fotos, pois só vemos seu rosto tentando se esconder da objetiva.
— Digamos que tudo começou quando ela tinha catorze anos, em 1964. Ela se defendeu — não conseguia aceitar —, segundo Martin. Era isso que ela ameaçava contar. Martin certamente não tinha grande experiência na época, ele consultava o pai, mas Gottfried e ele firmaram uma espécie de pacto através do qual tentavam iniciar Harriet.
Lisbeth assentiu com a cabeça.
— Você escreveu, nas suas anotações, que Henrik Vanger insistiu para que Harriet fosse morar na casa dele no inverno de 1964.
— Henrik percebeu que algo não ia bem naquela família. Para ele, a causa eram discussões e desavenças entre Gottfried e Isabella, por isso acolheu Harriet em sua casa para que ela pudesse ficar tranquila e se dedicar aos estudos.
— Um contratempo para Gottfried e Martin. Eles não podiam mais dispor dela facilmente, nem controlar sua vida. Mas de tempo em tempo... Onde aconteciam esses abusos?
— Provavelmente na cabana de Gottfried. Tenho quase certeza que as fotos foram tiradas lá. Vai ser fácil verificar. A casa tem uma localização perfeita, é isolada e longe do povoado. Até que um dia Gottfried bebeu demais e acabou se afogando como um imbecil.
Lisbeth balançou pensativamente a cabeça.