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— Eu te entendo.

— Você só não me explicou como vocês concluíram que eu estava viva.

— Depois que descobrimos o que se passou, não foi muito difícil deduzir o resto. Para poder desaparecer, você precisou de ajuda. Anita Vanger era sua confidente e vocês haviam passado alguns dias do verão na cabana de Gottfried. Se fosse contar a alguém, seria para ela, e ela acabava de receber sua habilitação de motorista.

Harriet Vanger olhou para ele com uma expressão indefinida.

— Agora que você sabe que eu estou viva, o que vai fazer?

— Vou contar a Henrik. Ele merece saber.

— E depois? Você é um jornalista.

— Harriet, não tenho nenhuma intenção de entregá-la à mídia. Cometi tantas faltas profissionais nessa triste história que a Associação dos Jornalistas provavelmente me expulsaria se ficasse sabendo. — Ele tentou fazer graça. — Uma falta a mais ou a menos não faz diferença, e não quero prejudicar minha ex-babá.

Ela não pareceu achar graça.

— Quantas pessoas sabem a verdade?

— De que você está viva? Neste momento, apenas eu, você, Anita e a minha parceira Lisbeth. Dirch Frode conhece uns dois terços da história, mas continua achando que você morreu em 1966.

Harriet Vanger parecia refletir sobre alguma coisa. Olhou ao longe, na obscuridade do campo. Mikael teve de novo a sensação de estar exposto a uma situação desagradável e lembrou que Harriet tinha uma espingarda apoiada contra a lona da barraca, ao alcance da mão. Mas procurou afastar esses pensamentos. Mudou de assunto.

— Como você virou criadora de ovelhas na Austrália? Deduzi que Anita Vanger ajudou-a a abandonar a ilha, provavelmente no porta-malas do carro dela, quando a ponte foi reaberta um dia depois do acidente.

— Na verdade, apenas fiquei deitada no banco de trás do carro com um cobertor por cima de mim. Eu disse a Anita que precisava fugir. Você deduziu bem. Entreguei-me a ela, ela me ajudou e foi uma amiga leal durante todos esses anos.

— Como veio parar aqui na Austrália?

— Primeiro, antes de deixar a Suécia, morei por algumas semanas no quarto de estudante de Anita em Estocolmo. Anita tinha um dinheiro dela, que generosamente me emprestou. Também me deu seu passaporte. Éramos parecidas, e tudo que precisei fazer foi mudar a cor do cabelo para ficar loura. Morei num convento na Itália por quatro anos. Não como freira; existem conventos onde é possível alugar celas a um preço baixo, só para ficar ali em paz, meditando. Depois conheci Spencer Cochran por acaso. Era alguns anos mais velho que eu, concluíra seus estudos na Inglaterra e passeava pela Europa. Me apaixonei e ele também. Foi isso que aconteceu. Anita Vanger casou-se com ele em 1971. Nunca me arrependi, era um homem maravilhoso. Mas ele morreu há oito anos e de repente me tornei proprietária da empresa.

— E o passaporte? Alguém poderia notar que havia duas Anita Vanger.

— Não. Por que notariam? Uma sueca chamada Anita Vanger casou-se com Spencer Cochran. O fato de morar em Londres ou na Austrália não tem importância nenhuma. Em Londres, ela é a mulher separada de Spencer Cochran. Na Austrália, é sua esposa. Os cartórios de Canberra e Londres não se comunicam. Além disso, obtive um passaporte australiano com o nome Cochran. E um arranjo que funciona perfeitamente bem. O plano só não daria certo se Anita quisesse se casar. Meu casamento precisou ser registrado num cartório sueco.

— E ela não se casou.

— Disse que nunca encontrou ninguém, mas sei que se absteve por minha causa. Foi uma verdadeira amiga.

— O que ela fazia no seu quarto?

— Eu não estava raciocinando muito bem naquele dia. Tinha medo de Martin. Enquanto ele esteve em Uppsala, deixei o problema de lado, mas quando o vi na rua em Hedestad percebi que nunca mais estaria segura. Hesitei entre contar a Henrik e fugir. Henrik não pôde falar comigo, então saí andando à toa pelo povoado. Claro que o acidente na ponte fez todo mundo esquecer tudo mais, é natural. Mas não foi esse o meu caso. Eu tinha meu próprios problemas e mal tomei consciência do acidente. Tudo parecia irreal. Então encontrei Anita, que estava hospedada num anexo da casa de Gerda e Alexander. Por fim tomei uma decisão e pedi que ela me ajudasse. Fiquei no quarto dela e não ousei mais sair dali. Mas havia uma coisa que eu precisava levar comigo: um diário íntimo onde eu tinha anotado tudo o que aconteceu. Também precisava de roupas. Anita foi buscar.

— E suponho que ela não resistiu à tentação de abrir a janela para dar uma olhada no acidente. — Mikael refletiu um momento. — O que eu não entendo é por que você não foi ver Henrik, como era a sua intenção.

— O que você acha?

— Não sei, não entendo. Estou certo de que Henrik a teria ajudado. Martin não tinha como prejudicá-la imediatamente, e Henrik não a trairia. Teria conduzido o caso com discrição, encaminhando-o para uma espécie de terapia ou tratamento.

— Você não entendeu o que se passou.

Até então, Mikael mencionara apenas o abuso sexual que Martin sofrera de Gottfried, sem mencionar o caso de Harriet.

— Gottfried abusou de Martin — disse Mikael discretamente. — Imagino que tenha abusado também de você.

Harriet Vanger não mexeu um só músculo. Depois respirou profundamente e escondeu o rosto nas mãos. Em menos de três segundos, Jeff apareceu ao lado dela, perguntando se tudo estava all right. Harriet Vanger olhou para ele e dirigiu-lhe um breve sorriso. Então surpreendeu Mikael ao se levantar e abraçar seu studs manager, dando-lhe um beijo no rosto. Virou-se para Mikael, com o braço no ombro de Jeff.

— Jeff, este é Mikael, um velho... amigo de muito, muito tempo atrás. Ele está me trazendo problemas e más notícias, mas nunca devemos matar o mensageiro. Mikael, este é Jeff Cochran, meu filho mais velho. Tenho também outro filho e uma filha.

Mikael balançou a cabeça. Jeff tinha uns trinta anos. Harriet Vanger deve ter engravidado logo após o casamento com Spencer Cochran. Ele se levantou, estendeu a mão para Jeff e disse que sentia muito perturbar a mãe dele, mas que infelizmente era necessário. Harriet trocou algumas palavras com Jeff e o mandou embora. Tornou a sentar-se com Mikael e pareceu tomar uma decisão.

— Chega de mentira. Acho que agora acabou. De certo modo, eu estava esperando por esse dia desde 1966. Durante muitos anos, minha angústia era que alguém se dirigisse a mim pelo meu verdadeiro nome. E não me importa mais que você saiba. Meu crime está prescrito. E estou pouco ligando para o que as pessoas vão pensar.

— Que crime? — perguntou Mikael.

Ela o fitou bem nos olhos, mas ele ainda não sabia do que ela estava falando.

— Eu tinha dezesseis anos. Estava com medo, envergonhada, desesperada. E sozinha. Somente Anita e Martin sabiam a verdade. Contei a Anita sobre os abusos sexuais, mas não consegui contar que meu pai também era um psicopata assassino de mulheres. Anita nunca soube. Em troca, confessei-lhe o crime que eu mesma havia cometido e que era suficientemente horrível para que afinal não ousasse contá-lo a Henrik. Pedi perdão a Deus e me escondi num convento por vários anos.

— Harriet, seu pai era um estuprador e um assassino. Você não é culpada de nada.

— Eu sei. Meu pai abusou de mim durante um ano. Fiz de tudo para evitar que ele... mas ele era meu pai e eu não podia me recusar a fazer alguma coisa com ele sem lhe dar uma explicação. Então menti e aceitei participar da comédia, como se aquilo fosse natural, cuidando sempre para que houvesse outras pessoas quando eu me encontrava com ele. Minha mãe sabia o que ele fazia, mas não se importava.

— Isabella sabia? — exclamou Mikael, consternado.

A voz de Harriet Vanger ficou mais dura.

— Claro que sim. Nada se passava em nossa família sem que Isabella soubesse. Mas ela nunca dava atenção às coisas desagradáveis ou que pudessem depreciá-la. Meu pai podia me estuprar na sala diante de seus olhos sem que ela visse. Era incapaz de reconhecer que algo não ia bem na minha vida ou na dela.