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— Cheguei a conhecê-la. É uma víbora.

— E o que foi a vida inteira. Muitas vezes refleti sobre o relacionamento entre meu pai e ela. Concluí que depois do meu nascimento eles raramente, ou nunca mais, tiveram relações sexuais. Meu pai tinha mulheres, mas estranhamente temia Isabella. Estava afastado dela sem poder se divorciar.

— Ninguém se divorcia na família Vanger.

Ela riu pela primeira vez.

— É verdade. O fato é que eu não tive coragem de contar. O mundo inteiro ficaria sabendo. Meus colegas de escola, todos na família...

Mikael pôs a mão sobre a de Harriet.

— Harriet, estou arrasado.

— Eu tinha catorze anos quando ele me violentou pela primeira vez. Levava-me regularmente à cabana. Várias vezes Martin também estava lá. Forçava nós dois a fazer coisas com ele. Segurava-me nos braços para que Martin... se satisfizesse em cima de mim. E assim, depois da morte do meu pai, Martin estava pronto para assumir o papel dele. Queria que eu fosse sua amante e achava natural que eu me submetesse. E nesse momento não tive mais escolha, fui obrigada a fazer o que Martin queria. Havia me livrado de um carrasco para cair nas garras de outro, e tudo o que podia fazer era procurar nunca ficar a sós com ele.

— Henrik teria...

— Você ainda não entendeu — ela disse, elevando a voz.

Mikael viu os homens na tenda ao lado virarem-se para eles. Ela baixou de novo a voz e inclinou-se para ele.

— Está com todas as cartas agora. Tire você mesmo as conclusões. Levantou-se e foi buscar mais duas cervejas. Quando voltou, Mikael disse uma única palavra.

— Gottfried?

Ela fez que sim com a cabeça.

— No dia 7 de agosto de 1965, meu pai me obrigou a acompanhá-lo até a cabana. Henrik estava viajando. Meu pai havia bebido e tentou me forçar. Mas não conseguiu gozar e começou a delirar. Ele era sempre... grosseiro e violento comigo quando estávamos a sós, mas dessa vez ultrapassou os limites. Urinou em cima de mim. A seguir contou-me o que gostaria de fazer comigo. Um pouco antes havia falado das mulheres que matara. Vangloriava-se. Citava a Bíblia. Aquilo durou horas. Não entendi a metade do que ele dizia, mas percebi que ele estava completamente maluco.

Ela tomou um gole de cerveja.

— A certa altura, por volta de meia-noite, ele teve uma crise. Parecia um louco furioso. Estávamos no mezanino. Ele pôs uma camiseta em volta do meu pescoço e apertou com toda a força. Vi tudo preto. Não duvido um segundo que ele realmente tentou me matar e, pela primeira vez naquela noite, conseguiu me estuprar.

Harriet Vanger pôs uns olhos suplicantes em Mikael.

— Mas estava tão bêbado que consegui me livrar, não sei como. Saltei do mezanino até a peça de baixo e saí correndo, em pânico. Estava nua e corri sem refletir, até chegar ao pontão. Ele chegou cambaleando atrás de mim.

De repente, Mikael desejou que ela parasse de contar.

— Eu era suficientemente forte para derrubar um bêbado na água. Utilizei um remo para mante-lo debaixo da água até que parasse de se mexer. Bastaram alguns segundos.

O silêncio foi ensurdecedor quando ela fez uma pausa.

— E, assim que levantei os olhos, Martin estava ali. Parecia aterrorizado e, ao mesmo tempo, divertia-se. Não sei desde quando nos espionava em frente à casa. E assim eu fiquei entregue à sua vontade. Ele se aproximou de mim e me pegou pelos cabelos, me levou de volta para a cabana e me jogou na cama de Gottfried. Me amarrou e me violentou, enquanto nosso pai ainda flutuava na água junto ao pontão. Não pude sequer me defender.

Mikael fechou os olhos. Sentiu vergonha e desejou ter deixado Harriet Vanger em paz. Mas a voz dela adquirira uma nova força.

— Desse dia em diante caí sob seu poder. Fazia o que ele me dizia, estava como que paralisada. Se escapei da loucura, foi porque Isabella decidiu que Martin precisava mudar de ares após o desaparecimento trágico do pai e o enviou a Uppsala. Evidentemente, era porque ela sabia o que ele fazia comigo; era sua maneira de resolver o problema. Você pode imaginar a decepção de Martin.

Mikael assentiu com a cabeça.

— No ano seguinte, ele só voltou nas férias de Natal, e consegui ficar distante. Acompanhei Henrik numa viagem a Copenhague entre o Natal e o Ano-novo. E, quando chegaram as férias de verão, Anita estava lá. Abri-me com ela e ela permaneceu o tempo todo comigo, o que o impediu de se aproximar de mim.

— E então você o viu na rua da Estação.

— Sim, fiquei sabendo que não viria à reunião de família e que permaneceria em Uppsala. Mas parece ter mudado de ideia e então eu o vi ali, do outro lado da rua, olhando fixamente para mim. Sorrindo para mim. Como um pesadelo. Eu assassinara meu pai e me dei conta de que nunca me libertaria do meu irmão. Até então, só havia pensado em me matar, mas finalmente preferi fugir.

Ela olhou para Mikael com um olhar aliviado.

— Como é bom contar a verdade... Agora você sabe de tudo. Como pretende utilizar o que sabe?

27. SÁBADO 26 DE JULHO — SEGUNDA-FEIRA 28 DE JULHO

Mikael se encontrou com Lisbeth Salander na frente do seu prédio na Lundagatan às dez da manhã e a levou ao crematório do cemitério norte. Fez-lhe companhia durante a cerimônia. Por um bom tempo, Lisbeth e Mikael foram as únicas pessoas presentes além do pastor, mas, quando o ritual funerário começou, Dragan Armanskij apareceu. Dirigiu um breve aceno de cabeça a Mikael, colocou-se atrás de Lisbeth e pôs suavemente a mão em seu ombro. Ela inclinou a cabeça sem olhar para ele, como se soubesse quem havia chegado às suas costas. Mas logo o ignorou, assim como ignorava Mikael.

Lisbeth não havia contado nada sobre a mãe, mas o pastor aparentemente falara com alguém da casa de saúde onde ela falecera, e Mikael entendeu que a causa da morte fora uma hemorragia cerebral. Lisbeth não disse uma só palavra durante a cerimônia. O pastor perdeu o fio da meada por duas vezes quando se dirigiu diretamente a Lisbeth, que o olhava bem nos olhos sem responder. Ao terminar, ela virou as costas e foi embora sem agradecer nem se despedir. Mikael e Dragan respiraram fundo e se olharam de soslaio. Eles ignoravam totalmente o que se passava na cabeça dela.

— Ela não está nada bem — disse Dragan.

— Acho que eu a entendo — respondeu Mikael. — Foi bom o senhor ter vindo.

— Não estou tão certo disso. Armanskij fixou o olhar em Mikael.

— Vocês vão voltar para o Norte? Cuide dela.

Mikael prometeu. Eles se separaram em frente à porta da igreja. Lisbeth já esperava no carro.

Ela precisava retornar a Hedestad para buscar a moto e o equipamento que pegara emprestado da Milton Security. Só rompeu o silêncio depois que passaram de Uppsala, para perguntar como tinha sido a viagem à Austrália. Mikael desembarcara no aeroporto de Arlanda na noite anterior e só dormira algumas horas. Enquanto conduzia o carro, ele contou a história de Harriet Vanger. Lisbeth Salander ficou em silêncio por meia hora, e só depois abriu a boca.

— Cretina — disse.

— De quem você está falando?

— Da Harriet Cretina Vanger. Se ela tivesse feito alguma coisa em 1966. Martin Vanger não teria continuado a matar e a estuprar durante trinta e sete anos.

— Harriet sabia dos assassinatos do pai, mas não que Martin participara deles. Ela fugiu de um irmão que a violentava e que ameaçava contar que ela afogara o pai, se não obedecesse a suas ordens.

— Conversa mole.

O resto da viagem a Hedestad transcorreu em silêncio. Lisbeth estava com um humor particularmente sombrio. Mikael estava atrasado para o encontro que havia marcado e pediu que ela descesse no cruzamento antes da ponte, perguntando-lhe se estaria ainda ali quando ele voltasse.

— Pretende passar a noite aqui? — ela perguntou.