Nas semanas seguintes, à medida que os documentos que a Millennium apresentara eram examinados com lupa e o quebra-cabeça remontado, foi estabelecida a ligação entre o império wernnerströmiano de empresas obscuras e a máfia internacional, que englobava tudo, desde o tráfico de armas e a lavagem de dinheiro vindo do tráfico sul-americano de drogas até a prostituição em Nova York e até mesmo, indiretamente, o comércio sexual de crianças no México. Uma empresa de Wennerström sediada em Chipre suscitou uma indignação colossal quando se divulgou que ela havia tentado comprar urânio enriquecido no mercado negro da Ucrânia. Por toda parte, uma ou outra das inúmeras empresas-fantasmas de Wennerström parecia surgir num contexto nebuloso.
Erika Berger constatou que o livro sobre Wennerström era o que Mikael já havia escrito de melhor. O estilo era desigual e a própria linguagem era pobre em alguns momentos — ele não tivera tempo de cuidar da forma —, mas Mikael dava o troco e o livro inteiro era movido por uma raiva que seria forçosamente percebida por qualquer leitor.
Por acaso, Mikael Blomkvist topou com seu antagonista, o ex-repórter de economia William Borg, à porta do Moulin, onde Mikael, Erika Berger e Christer Malm foram festejar com seus colaboradores o Dia de Santa Luzia, numa noitada generosamente regada a bebidas, patrocinada pela revista. Borg estava acompanhado de uma garota completamente bêbada, da idade de Lisbeth Salander.
Mikael deteve-se e o encarou. Borg sempre lhe despertara seus piores impulsos e ele foi obrigado a se controlar para não dizer ou fazer algo inconveniente. Os dois mediram-se com o olhar sem dizer uma palavra.
A aversão de Mikael por Borg era visível. Erika interrompeu esse comportamento de machos tomando Mikael pelo braço e conduzindo-o para dentro do bar.
Mikael decidiu que, numa próxima ocasião, pediria que Lisbeth Salander fixasse uma de suas investigações pessoais sobre Borg. Apenas formalidade.
Durante toda a tempestade na mídia, o personagem principal do drama, o financista Hans-Erik Wennerström, permaneceu praticamente invisível. No dia cm que a reportagem da Millennium saiu, o magnata das finanças comentou o texto numa entrevista coletiva de imprensa já marcada para tratar de outro assunto. Wennerström declarou que as acusações não tinham fundamento e que a documentação apresentada era falsa. Lembrou que o mesmo repórter fora condenado por difamação um ano antes.
Depois disso, somente os advogados de Wennerström responderam às perguntas da imprensa. Dois dias após o lançamento do livro de Mikael Blomkvist, rumores insistentes indicavam que Wennerström havia deixado a Suécia. Os jornais vespertinos usaram a palavra "fuga" nas manchetes. Quando, durante a segunda semana, a polícia de crimes financeiros tentou entrar em contato com Wennerström, constatou-se que ele não se encontrava mais no país. Em meados de dezembro, a polícia confirmou que Wennerström estava sendo procurado e, na véspera do Dia de São Silvestre, um comunicado de busca formal foi expedido para as polícias internacionais. Nesse mesmo dia, um dos conselheiros próximos de Wennerström foi detido quando tentava pegar um avião para Londres.
Várias semanas depois, um turista sueco disse ter visto Hans-Erik Wennerström entrando num carro em Bridgetown, capital de Barbada, nas Pequenas Antilhas. Para provar o que dizia, o turista enviou uma foto tirada a grande distância que mostrava um homem de óculos escuros vestindo uma camisa branca desabotoada e calça clara. O homem não podia ser identificado com certeza, mas os jornais vespertinos enviaram repórteres que tentaram, sem êxito, seguir a pista de Wennerström nas ilhas antilhanas. Foi o começo de uma perseguição fotográfica do bilionário em fuga.
Seis meses mais tarde, a caçada foi interrompida. Hans-Erik Wennerström foi encontrado morto num apartamento em Marbella, na Espanha, onde residia sob o nome de Victor Fleming. Fora morto com três tiros na nuca disparados à queima-roupa. A polícia espanhola seguiu a hipótese de que ele fora vítima de um assaltante.
A morte de Wennerström não foi surpresa para Lisbeth Salander. Ela tinha boas razões para suspeitar que sua morte estava relacionada ao fato de ele não ter mais acesso ao dinheiro de um certo banco nas ilhas Caimãs, que teria necessitado para pagar algumas dívidas na Colômbia.
Se alguém tivesse se dado o trabalho de pedir a ajuda de Lisbeth Salander para localizar Wennerström, ela teria podido dizer exatamente onde ele estava quase todos os dias. Ela acompanhara pela internet sua fuga desesperada por cerca de dez países e observara seu pânico crescente através do correio eletrônico, quando ele conectava seu computador em algum lugar. Mas nem Mikael Blomkvist teria acreditado que o ex-bilionário em fuga fosse tão cretino a ponto de levar consigo o mesmo computador que fora tão cuidadosamente invadido.
Depois de seis meses, Lisbeth cansou-se de seguir Wennerström. A pergunta que ela devia responder agora era até onde ia seu envolvimento.
Wennerström era certamente um vigarista de primeira categoria, mas não era seu inimigo pessoal; ela não tinha interesse em interferir na vida dele. Poderia avisar Mikael Blomkvist, mas ele se contentaria em publicar uma boa história. Poderia avisar a polícia, mas a probabilidade de Wennerström ser avisado a tempo e desaparecer era muito grande. Além disso, por princípio ela não falava com a polícia.
Mas havia outras contas a acertar. Ela pensava na servente de vinte e dois anos cuja cabeça fora mantida mergulhada na banheira.
Quatro dias antes de encontrarem o corpo de Wennerström, ela tomou uma decisão. De seu celular, ligou para um advogado em Miami, na Flórida, que parecia ser uma das pessoas que Wennerström mais tentava evitar. Falou com uma secretária e pediu que lhe transmitisse uma mensagem sibilina. Um nome, Wennerström, e um endereço em Marbella. Nada mais.
Quando a tevê anunciou a morte de Wennerström, ela abandonou a reportagem pela metade. Foi preparar um café e um sanduíche de patê de fígado com pepinos em conserva.
Erika Berger e Christer Malm ocupavam-se dos costumeiros preparativos para o Natal. Sentado na cadeira de Erika, Mikael olhava os dois enquanto bebia um vinho quente. Todos os colaboradores c muitos dos freelancers regulares receberam de presente de fim de ano uma sacola de couro com o logotipo da Mlllennium. Depois de prepararem os pacotes, eles se lançaram ao trabalho de escrever e selar mais de duzentos cartões de Natal destinados à imprensa, fotógrafos e colegas.
Mikael tentou resistir à tentação, mas não conseguiu. Pegou um último cartão de Natal e escreveu: Feliz Natal e Feliz Ano Novo. Obrigado por sua inestimável contribuição no longo deste ano.
Assinou e endereçou o cartão a Janne Dahlman, aos cuidados da redação do Finansmagasinet Monopol.
Quando Mikael voltou para casa à noite, encontrou um aviso do correio na caixa de correspondência. Foi buscar a encomenda na manhã seguinte e a abriu assim que chegou à redação. O pacote continha um repelente contra mosquito e meia garrafa de Reimersholm Aquavita. Um bilhete dizia: Se não tiver programa melhor, estarei ancorado em Arholma no próximo solstício de verão. Estava assinado por seu ex-colega de classe Robert Lindberg.