Tradicionalmente, a redação da Millennium parava de trabalhar antes do Natal e durante as festas de fim de ano. Desta vez as coisas não puderam ser assim; a pequena redação estava sendo muito solicitada, e jornalistas do mundo inteiro continuavam a procurá-la diariamente. Dois dias antes do Natal, Mikael Blomkvist leu quase por acaso um artigo no Financial Times que resumia a situação atual da comissão bancária c financeira internacional, constituída às pressas para investigar o império Wennerström. O artigo dizia que a comissão trabalhava com a hipótese de que Wennerström recebera no último momento uma advertência de que seria desmascarado.
De fato, suas contas no Bank of Kroenenfeld nas ilhas Caimãs, com duzentos e sessenta milhões de dólares, haviam sido esvaziadas na véspera da denúncia publicada pela Millemium.
Esse dinheiro encontrava-se em contas que somente Wennerström podia movimentar. Ele nem tinha necessidade de ir ao banco; bastava apresentar uma série de códigos de compensação para que o dinheiro fosse transferido a qualquer banco de qualquer lugar do mundo. O dinheiro fora transferido para a Suíça, onde uma colaboradora convertera a soma em obrigações nominativas anônimas. Todos os códigos de compensação estavam em ordem.
A Europol expedira um comunicado de busca internacional da mulher desconhecida que utilizara um passaporte inglês roubado em nome de Verônica Sholes e que teria se hospedado num dos hotéis mais caros de Zurique. Uma foto relativamente nítida, tirada por uma câmera de segurança, mostrava uma mulher de baixa estatura com cabelos de franja reta, uma boca grande, seios generosos, roupas de grife e jóias de ouro.
Mikael Blomkvist examinou a foto, primeiro com uma rápida olhada, depois com expressão cada vez mais cética. Passados alguns segundos, pegou uma lupa na gaveta de sua mesa e tentou distinguir detalhes do rasto na foto do jornal.
Por fim, largou o jornal e ficou de boca aberta por alguns minutos, até soltar unia gargalhada tão histérica que Christer Malm levantou a cabeça e perguntou o que estava acontecendo. Mikael conseguiu apenas agitar a mão como resposta.
* * *
Na manhã da véspera de Natal, Mikael foi a Arsta se encontrar com a ex-mulher e a filha Pernilla para a troca de presentes. Pernilla recebeu o computador que estava no topo da sua lista e que Mikael e Monika haviam comprado juntos. Mikael ganhou uma gravata de Monika e, da filha, um romance policial de Ake Edwardson. Diferentemente do Natal anterior, todos estavam excitados com a atenção que a Millennium despertava na imprensa.
Almoçaram juntos. Mikael olhava Pernilla com o rabo do olho. Não via a filha desde que ela passara por Hedestad. Deu-se conta de que não havia conversado com Monika sobre a atração de Pernilla por aquela seita tradicionalista em Skelleftea. Tampouco podia contar que foram os conhecimentos bíblicos dela que o puseram finalmente na pista certa sobre o desaparecimento de Harriet Vanger. Não havia falado com a filha desde então e sentia uma ponta de remorso.
Ele não era um bom pai.
Depois do almoço, despediu-se da filha com um beijo e foi se encontrar com Lisbeth Salander no Slussen, para irem juntos a Sandhamn. Pouco haviam se visto desde que a Millennium soltara a bomba. Chegaram lá tarde da noite e ficaram até depois do Natal.
Como sempre, Mikael era uma companhia divertida, mas Lisbeth Salander teve a desagradável sensação de que ele a olhou de um modo particularmente estranho quando ela devolveu, com um cheque de cento e vinte mil coroas, o dinheiro que ele lhe emprestara. Mikael se absteve, porém, de qualquer comentário.
Fizeram um passeio até Trovill (o que Lisbeth considerou uma perda de tempo) e na volta compartilharam a ceia de Natal no albergue. Depois recolheram-se à cabana de Mikael, acenderam o aquecedor a lenha, puseram um disco de Elvis e se entregaram a brincadeiras sexuais tranquilas. De tempo em tempo, quando Lisbeth voltava à tona, ela tentava compreender o que estava sentindo.
Ela não tinha nenhum problema com Mikael como amante. Eles se divertiam na cama, era um entendimento físico muito espontâneo. E ele nunca tentava se impor.
O problema é que ela não entendia o que sentia por ele. Desde a puberdade, nunca baixara a guarda desse modo, deixando outra pessoa se aproximar tanto. Mikael Blomkvist tinha uma capacidade impressionante de transpor seus mecanismos de defesa e de levá-la, mais de uma vez, a falar de assuntos e sentimentos pessoais. Mesmo tendo o bom senso de ignorar a maior parte das perguntas dele, ela falava de si mesma como não podia imaginar que o faria com alguém, nem se ameaçada de morte. Isso a inquietava e a fazia se sentir nua e entregue à vontade dele.
Ao mesmo tempo — quando o olhava adormecido e escutava os seus roncos —, sentia que nunca confiara tão incondicionalmente em alguém. Sabia com uma certeza absoluta que Mikael Blomkvist jamais se aproveitaria do que sabia dela para feri-la. Não fazia parte da natureza dele.
A única coisa de que não falavam era da relação deles. Lisbeth não ousava falar e Mikael nunca tocava no assunto.
Na manhã seguinte à noite de Natal, tudo lhe pareceu de uma clareza assustadora. Ignorava como isso havia acontecido e tampouco não sabia o que iria fazer. Estava apaixonada pela primeira vez na vida.
Pouco importava que ele tivesse quase o dobro da sua idade. Nem que ele fosse, no momento, uma das pessoas mais badaladas da Suécia, que tinha inclusive sido capa da Newsweek — tudo não passava de blablablá. Mikael Blomkvist, porém, não era nem uma fantasia erótica nem um sonho acordado. Aquilo teria um fim e não poderia dar certo. Que necessidade ele tinha dela? A rigor, ela era apenas um passatempo enquanto ele aguardava a chegada de alguém cuja vida não fosse um maldito ninho de ratos.
De repente ela percebeu que o amor era o instante em que o coração fica a ponto de explodir.
Quando Mikael acordou, quase no final da manhã, ela já havia preparado o café e posto a mesa para o desjejum. Ele a acompanhou à mesa e logo percebeu que alguma coisa mudara na atitude dela — ela estava um pouco mais reservada. Quando ele perguntou o que havia, ela o olhou com uma expressão indefinida, como quem não está entendendo.
Depois do Natal, Mikael Blomkvist tomou o trem para Hedestad. Estava bem agasalhado e com verdadeiros calçados de inverno quando Dirch Frode foi buscá-lo na estação e o felicitou em voz baixa por seu sucesso jornalístico. Desde agosto não vinha a Hedestad e fazia quase uni ano que aparecera ali pela primeira vez. Os dois trocaram um aperto de mão, trataram-se cortesmente, mas havia entre eles muitas coisas não ditas, e Mikael sentia-se pouco à vontade.
Tudo fora preparado e a transação na casa de Dirch Frode durou apenas alguns minutos. Frode propôs que o dinheiro fosse depositado numa conta no exterior, mas Mikael quis que o pagamento fosse feito como honorários comuns.
— Não disponho de meios para receber o pagamento de outra forma — respondeu, seco, quando Frode insistiu.
Não era uma visita de natureza meramente econômica. Mikael tinha deixado roupas, livros e alguns objetos pessoais na casa dos convidados, quando ele e Lisbeth saíram às pressas de Hedeby.
Henrik Vanger continuava frágil desde o infarto, mas deixara o hospital de Hedestad e estava de volta à sua casa. Era constantemente acompanhado por uma enfermeira particular que o proibia de fazer longas caminhadas, subir escadas c discutir qualquer coisa que pudesse lhe causar fortes emoções. Bem naqueles dias ele pegara um resfriado e tinha ordens de não sair da cama.
— Além de tudo, ela custa caro — queixou-se Henrik Vanger. Mikael Blomkvist não ficou especialmente comovido; achou que o velho tinha condições de pagar, considerando o número de coroas que sonegara na vida. Henrik Vanger olhou para ele, contrariado, mas logo começou a rir.
— Dane-se! Você valeu todo esse dinheiro. Eu sabia.