Aprendera muito cedo que não adiantava nada chorar. Também aprendera que, sempre que tentou alertar alguém para alguma coisa de sua vida, a situação só piorava. Portanto, ela mesma é que devia resolver seus problemas com os métodos que julgasse necessários. Atitude que o dr. Nils Bjurman pagou caro para descobrir.
Mikael Blomkvist tinha a mesma tendência irritante de todos os outros de fuçar sua vida privada e de fazer perguntas que ela não queria responder. Só que ele não reagia como a maioria dos homens que ela conheceu.
Quando ela ignorava as perguntas, ele se contentava em encolher os ombros, desistia do assunto e a deixava tranquila. Surpreendente.
A prioridade de Lisbeth, quando conseguiu se apoderar do notebook dele em seu primeiro dia na casa, era evidentemente transferir todos os dados para o seu próprio computador. Desse modo, seria menos ruim se ele a despedisse; ela continuaria tendo acesso ao material.
Mas em seguida ela o provocou de propósito, lendo ostensivamente os documentos do notebook dele. Esperava que ele fosse ficar furioso. No entanto ele pareceu resignado, resmungou alguma coisa levemente sarcástica e foi tomar um banho, só voltando a abordar o assunto mais tarde. Cara estranho. Ela quase concluiu que ele confiava nela.
Mas o fato de ele estar a par de seus talentos como hacker era grave. Lisbeth Salander sabia muito bem que o termo jurídico aplicado ao tipo de pirataria que ela praticava, profissionalmente e por conta própria, era intrusão informática ilegal, que lhe podia valer até dois anos de prisão. Era um ponto sensíveclass="underline" ela não queria ser presa porque uma pena de prisão significaria que muito provavelmente lhe confiscariam o computador, única ocupação na qual se distinguia. Nunca pensou em contar a Dragan Armanskij ou a quem quer que fosse como obtinha as informações que eles compravam.
Com exceção de Praga e de algumas poucas pessoas conectadas que, como ela, se dedicavam profissionalmente à pirataria — e quase todas só a conheciam pelo codinome Wasp, ninguém sabia quem ela era nem onde morava —, somente Super-Blomkvist descobrira seu segredo. E a tinha desmascarado porque ela cometeu um erro que mesmo iniciantes com poucos anos no ramo não cometem, o que provava que seu cérebro andava falhando e que merecia ser castigada. Mas ele não ficou furioso nem ameaçou processá-la; em vez disso a contratou.
Assim, ela estava ligeiramente irritada com ele.
Um pouco antes de ela se retirar para o quarto, tinham acabado de comer um sanduíche quando ele perguntou, de repente, se ela era uma boa hacker. E ela respondera com naturalidade:
— Sou provavelmente a melhor da Suécia. Há talvez uns dois ou três do meu nível.
Não hesitou nem um pouco sobre a veracidade de sua resposta. Numa certa época, Praga fora melhor que ela, mas fazia muito tempo que o superara.
No entanto Lisbeth espantou-se consigo mesma por pronunciar essas palavras. Nunca fizera isso. Nem tinha um interlocutor para esse tipo de conversa, e de repente saboreou o fato de ele parecer impressionado com seus conhecimentos. Mas ele estragou tudo ao levantar a questão problemática: como ela aprendera a pirataria.
Ela não sabia o que responder. Eu sempre soube. Preferiu ir se deitar sem dizer boa-noite.
Para irritá-la ainda mais, Mikael não pareceu reagir quando ela virou as costas. De sua cama, ela o escutou mexer-se na cozinha, limpar a mesa e lavar a louça. Ele sempre ficava de pé mais tempo que ela, mas agora estava claramente indo se deitar. Ela o ouviu no banheiro, o ouviu entrar no quarto e fechar a porta.. Um momento depois, ouviu o rangido da cama quando ele se deitou, a cinquenta centímetros dela, do outro lado da parede.
Durante a semana que passou na casa dele, ele não tentou abordá-la sexualmente. Trabalhou com ela, pediu sua opinião, criticou-a quando raciocinava errado e apreciou suas objeções quando ela o corrigia. Tratou-a, nem mais nem menos, como um ser humano.
De repente, ela percebeu que gostava da companhia de Mikael Blomkvist e que até mesmo confiava nele. Nunca confiara em ninguém, com exceção de Holger Palmgren. Mas por razões bem diferentes. Palmgren fora uma boa alma previsível.
Levantou-se, foi até a janela e ficou olhando, nervosa, a escuridão lá fora. O que mais a paralisava era mostrar-se nua diante de alguém pela primeira vez. Estava convencida de que seu corpo raquítico era repulsivo. Os seios, patéticos. Não tinha quadris que merecessem esse nome. A seus próprios olhos, não tinha grande coisa a oferecer. No entanto, era uma mulher perfeitamente normal, com os mesmos desejos e pulsões sexuais que as outras. Refletiu durante cerca de vinte minutos antes de se decidir.
Mikael estava deitado e lia um romance de Sara Paretsky quando ouviu a maçaneta da porta girar e viu Lisbeth Salander aparecer. Estava envolvida num lençol e se mantinha no vão da porta sem dizer nada, como se refletisse.
— Algum problema? — perguntou Mikael. Ela fez que não com a cabeça.
— O que você quer?
Ela se aproximou dele, pegou seu livro e o pôs na mesa-de-cabeceira. Depois se curvou para a frente e o beijou na boca. As intenções dela não podiam ser mais claras. Sentou-se na cama e ficou olhando-o de um jeito perscrutador. Pôs uma mão sobre o lençol acima do ventre dele. Como ele não protestasse, ela se inclinou e mordiscou um de seus mamilos.
Mikael Blomkvist estava totalmente perplexo, mas não indiferente. Depois de alguns segundos, pegou-a pelos ombros e afastou-a um pouco para poder ver seu rosto.
— Lisbeth... não sei se é uma boa idéia. Devemos trabalhar juntos.
— Quero fazer sexo com você. E não vejo problema algum em trabalharmos juntos; ao contrário, terei um problema sério se me mandar embora.
— Mas nem nos conhecemos direito.
Ela riu, um riso abrupto que mais parecia uma tosse.
— Quando fiz minha investigação sobre você, percebi que nunca teve esse tipo de problema. Ao contrário, você é daqueles que têm dificuldade de ficar longe das mulheres. Que está havendo? Não pareço bastante sexy?
Mikael balançou a cabeça e tentou encontrar algo inteligente para dizer. Como ele não respondeu, ela afastou o lençol e sentou-se de pernas abertas sobre ele.
— Não tenho preservativos — disse Mikael.
— Não faz mal.
Quando Mikael despertou, Lisbeth já estava de pé. Ouviu-a mexendo nas louças da cozinha. Eram quase sete da manhã. Ele dormira apenas duas horas e continuou de olhos fechados.
Não conseguia entender Lisbeth Salander. Em nenhum momento ela havia insinuado, nem mesmo através de um olhar, que estivesse interessada nele.
— Bom dia — disse Lisbeth à porta. Ela sorria. Um pouco, é verdade.
— Oi — disse Mikael.
— Não temos mais leite. Vou até o supermercado. Eles abrem às sete. E afastou-se tão depressa que Mikael nem teve tempo de responder. Ele a ouviu calçar-se, pegar a mochila, o capacete da moto e sair pela porta da frente. Ele fechou os olhos. Depois ouviu a porta ser aberta de novo e em alguns segundos ela reapareceu. Desta vez não sorria mais.
— Venha, você precisa ver uma coisa — disse com uma voz estranha. Mikael saltou imediatamente da cama e enfiou a calça. Durante a noite alguém viera lhe trazer um presente indesejado. No terraço da entrada, jazia o cadáver semicarbonizado de um gato esquartejado. As patas e a cabeça haviam sido cortadas, o ventre aberto e as entranhas removidas; os restos do gato estavam ao lado do cadáver, que parecia ter sido posto no fogo. A cabeça estava intacta e fora colocada em cima do assento da moto de Lisbeth. Mikael reconheceu a pelagem ruiva.
22. QUINTA-FEIRA 10 DE JULHO
Eles tomaram o café-da-manhã no jardim, em silêncio e sem leite no café. Lisbeth havia apanhado uma pequena Canon digital e fotografado a cena macabra antes de Mikael trazer um saco de lixo para levar tudo. Ele pôs o gato no porta-malas do carro que lhe emprestaram, mas não tinha muita certeza do que fazer com o cadáver. O lógico seria apresentar queixa por crueldade contra os animais, talvez também por ameaças, mas não sabia muito bem como explicar o porquê da ameaça.