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O pastor Falk disse que se lembrava muito bem de Harriet Vanger. Seu rosto iluminou-se e ele a descreveu como uma menina encantadora. Mikael logo percebeu, porém, que o pastor esquecera que ela estava desaparecida havia quase trinta e sete anos; falava dela como se tivesse acabado de vê-la e pediu que Mikael lhe mandasse um abraço e a encorajasse a vir visitá-lo. Mikael prometeu fazer isso.

Quando Mikael comentou o que tinha acontecido no dia em que Harriet desapareceu, o pastor se mostrou perplexo. Era evidente que não se lembrava do acidente na ponte. No entanto, no final da conversa, mencionou algo que fez levantar as orelhas de Mikael.

Mikael havia conduzido a conversa para o interesse de Harriet pela religião, e o pastor de repente ficou pensativo. Como se uma nuvem tivesse passado sobre seu rosto. Pôs-se a balançar para a frente e para trás por um momento, depois olhou fixamente Mikael e perguntou quem ele era. Mikael apresentou-se de novo e o velho refletiu mais um instante. Por fim, balançou a cabeça e pareceu irritado.

— Ela ainda está procurando. Precisa estar atenta e você deve preveni-la.

— Devo preveni-la do quê?

O pastor ficou subitamente agitado. Balançou a cabeça, franzindo as sobrancelhas.

— Ela deve ler sola scriptura e compreender sufficientia scripturae. Só assim poderá manter uma sola fide. José os exclui formalmente. Eles nunca foram incluídos no cânone.

Mikael não compreendeu nada, mas registrou. A seguir, o pastor Falk inclinou-se para ele e cochichou em tom confidenciaclass="underline"

— Acho que ela é católica. Está apaixonada por magia e ainda não encontrou seu Deus. E preciso guiá-la.

A palavra "católica" parecia ter uma conotação negativa para o pastor Falk.

— Eu achava que ela estava interessada no pentecostalismo.

— Não, não, no pentecostalismo não. Ela busca a verdade proibida. Não é uma boa cristã.

Nesse ponto, o pastor pareceu esquecer tanto Mikael quanto a conversa e voltou-se para falar com um dos outros pacientes.

Mikael voltou à ilha pouco depois das duas da tarde. Foi bater à porta de Cecilia Vanger, mas sem sucesso. Tentou o celular, não obteve resposta.

Instalou um detector de incêndio na cozinha e outro no vestíbulo. Colocou um dos extintores junto ao aquecedor, ao lado da porta do quarto, e o outro junto à porta do banheiro. Preparou então uma refeição leve, sanduíches e café, e sentou-se no jardim para passar ao notebook o registro de sua conversa com o pastor Falk. Refletiu por um longo momento, depois ergueu os olhos na direção da igreja.

O novo presbitério de Hedeby era uma casa moderna, sem nada de especial, a algumas centenas de metros da igreja. Mikael bateu à porta do pastor Margareta Strandh por volta das quatro e explicou que vinha fazer uma consulta sobre uma questão teológica. Margareta era uma mulher da idade de Mikael, de cabelos castanhos, e vestia jeans e camisa de flanela. Estava descalça e tinha as unhas dos pés pintadas de vermelho. Ele já a encontrara algumas vezes no Café Susanne e lhe falara do pastor Falk. Mikael foi gentilmente recebido e convidado a se sentar no jardim da casa dela, bem como a tratá-la sem cerimônia.

Mikael contou que conversara com Otto Falk e repetiu as respostas dele, acrescentando que não entendera seu significado. Margareta Strandh escutou e pediu que Mikael repetisse palavra por palavra o que Falk dissera. Ela refletiu por um instante.

— Comecei a trabalhar aqui em Hedeby há apenas três anos e nunca vi o pastor Falk. Ele já havia se aposentado vários anos antes, mas soube que era bastante tradicionalista. O que ele disse significa mais ou menos que devemos nos ater unicamente aos escritos — sola scriptura — e que eles são sufficientia scripturae. Para os crentes tradicionalistas, essa última expressão significa o reconhecimento da Sagrada Escritura como única fonte de autoridade. Sola fide significa "a única fé", ou "a fé pura".

— Entendo.

— Tudo isso pertence, por assim dizer, aos dogmas fundadores. É a base da Igreja e nada tem de extraordinário. Ele disse simplesmente: Leia a Bíblia ela oferece o conhecimento suficiente e garante a fé pura.

Mikael sentiu-se um pouco desconfortável.

— Mas permita que eu lhe pergunte: em que contexto ocorreu essa conversa?

— Fiz perguntas sobre alguém que ele conheceu há muito tempo e sobre quem estou escrevendo.

— Alguém numa busca religiosa?

— Algo do gênero.

— Certo. Acho que percebo a relação. O pastor Falk disse duas outras coisas — que José os exclui formalmente e que eles nunca foram incluídos no cânone. Será que você não entendeu mal e ele disse Josefo em vez de José? Na verdade, é o mesmo nome.

— É possível — disse Mikael. — Gravei a conversa, se quiser escutar.

— Não, acho que não é necessário. As duas frases estabelecem de maneira clara o que ele quis dizer. Josefo era um historiador judeu e a frase eles nunca foram incluídos no cânone provavelmente indica que nunca fizeram parte do cânone hebraico.

— E o que isso quer dizer?

Ela riu.

— O pastor Falk afirmou que essa pessoa tinha uma atração por fontes esotéricas, mais precisamente pelos apócrifos. A palavra apokryphos significa "oculto", e os apócrifos são livros ocultos que alguns contestam fortemente e que outros consideram como parte do Antigo Testamento. São os livros de Tobias, Judite, Ester, Baruc, Sirac, os Macabeus e mais outros dois ou três.

— Desculpe a minha ignorância. Já ouvi falar dos apócrifos, mas nunca os li. O que eles têm de especial?

— Na verdade, nada de especial, a não ser que foram escritos um pouco mais tarde que o restante do Antigo Testamento. Por isso os apócrifos foram riscados da Bíblia hebraica. Não que os doutores da lei desconfiassem de seu conteúdo, mas simplesmente porque foram escritos depois da época em que a obra da revelação de Deus estava terminada. Em contrapartida, os apócrifos figuram na velha tradução grega da Bíblia. Portanto, não são controvertidos na Igreja católica.

— Entendo.

— Contudo, são particularmente controvertidos na Igreja protestante. Na época da Reforma, os teólogos buscavam se aproximar ao máximo da velha Bíblia hebraica. Martinho Lutero retirou os apócrifos da Bíblia da Reforma, e mais tarde Calvino afirmou que os apócrifos não deviam em hipótese alguma servir de base para as confissões de fé, por conterem afirmações que contradiziam a claritas Scripturae — a clareza das Escrituras.

— Ou seja, livros censurados.

— Exatamente. Os apócrifos afirmam, por exemplo, que se pode praticar a magia, que a mentira é autorizada em alguns casos e outras coisas semelhantes, que evidentemente indignam os exegetas dogmáticos das Escrituras.

— E não é nada impossível, se alguém sente uma atração pela religião, que os apócrifos apareçam na sua lista de leitura, para a grande irritação de homens como o pastor Falk.

— Isso mesmo. È quase inevitável o confronto com os apócrifos se nos interessamos pela Bíblia ou pelo catolicismo, e é muito provável que alguém interessado pelo esoterismo, de maneira geral, os leia.

— Por acaso teria um exemplar dos apócrifos? Ela riu mais uma vez. Um riso aberto, amistoso.

— Claro. Os apócrifos foram editados pela comissão bíblica nos anos 1980 por ocasião de um estudo nacional.

Dragan Armanskij perguntou-se o que poderia estar havendo quando Lisbeth Salander pediu uma conversa particular. Ele fechou a porta e fez sinal para ela se sentar na poltrona dos visitantes. Ela contou que o trabalho para Mikael Blomkvist estava terminado — Dirch Frode pagaria antes do fim do mês —, mas que decidira prosseguir a investigação. Mikael lhe oferecera um salário mensal consideravelmente inferior.