— Em suma, é uma questão pessoal — disse Lisbeth Salander. — Até agora nunca aceitei trabalho a não ser de você, segundo nosso acordo. O que quero saber é o que será da nossa relação se eu começar a pegar trabalhos por conta própria.
Dragan Armanskij afastou as mãos.
— Você é seu patrão, pode pegar os trabalhos que quiser e cobrar como quiser. Fico contente de que tenha fontes próprias de dinheiro. Mas seria desleal atrair para você clientes que conheceu por nosso intermédio.
— Não tenho essa intenção. Fiz o trabalho conforme o contrato que estabelecemos com Blomkvist. Esse trabalho está terminado. Agora eu é que quero continuar no caso. Faria até mesmo de graça.
— Nunca faça nada de graça.
— Entenda, estou querendo dizer que quero saber aonde vai dar essa história. Convenci Mikael Blomkvist a pedir a Dirch Frode um contrato suplementar como assistente de pesquisa.
Ela estendeu o contrato a Armanskij, que o percorreu com os olhos.
— Esse salário equivale quase a trabalhar por nada. Lisbeth, você tem talento. Sabe que pode ganhar bem mais trabalhando comigo, se aceitasse um regime de tempo integral.
— Não quero trabalhar em tempo integral. Mas continuarei fiel a você, Dragan. Você tem sido correto comigo desde que comecei aqui. Quero saber se para você está bem esse tipo de contrato, porque não quero que haja problemas entre nós.
— Entendo. — Ele refletiu um instante. — Para mim está certo. Obrigado por me procurar. Se outras situações como essa surgirem no futuro, peço que me avise, para não haver mal-entendidos.
Lisbeth Salander ficou em silêncio por um minuto ou dois, calculando se havia algo a acrescentar. Fixou os olhos em Armanskij sem dizer nada. Depois balançou a cabeça, levantou-se e saiu, como de hábito sem se despedir. Uma vez obtida a resposta que esperava, o interesse por Armanskij tinha evaporado. Ele sorriu com serenidade. O fato de ela ter vindo se aconselhar com ele significava um avanço em seu processo de socialização.
Abriu uma pasta com um relatório sobre a segurança de um museu onde estava prevista uma exposição de impressionistas franceses. Depois deixou a pasta de lado e olhou para a porta por onde Salander acabara de sair. Lembrou-se do dia em que a vira rindo na companhia de Mikael Blomkvist e perguntou-se se ela estava ficando adulta ou se era Blomkvist que a atraía. Mas sentiu também uma inquietação. Ele nunca conseguira se livrar da sensação de que Lisbeth Salander era uma vítima perfeita. E eis que agora ela seguia a pista de um assassino furioso numa aldeia perdida.
Retornando em direção ao norte, Lisbeth sentiu vontade de passar na casa de saúde de Äppelviken para ver sua mãe. Exceto pela visita no Dia de São João, ela não via a mãe desde o Natal e culpava-se por visitá-la tão pouco. Essa nova visita, apenas algumas semanas depois, era incomum.
A mãe estava na sala de convivência. Lisbeth ficou pouco mais de uma hora e a levou para passear no laguinho dos patos, no jardim em frente à instituição. A mãe continuava confundindo-a com a irmã. Como de hábito, não estava inteiramente presente, embora a visita parecesse agitá-la.
Quando Lisbeth despediu-se, a mãe não quis soltar sua mão. Lisbeth prometeu voltar em breve, mas a mãe a olhou com inquietação e um ar muito infeliz.
Como se estivesse pressentindo uma catástrofe iminente.
Mikael passou duas horas no jardim dos fundos da casa, folheando os apócrifos, sem chegar a outra conclusão senão a de que estava perdendo tempo.
Mas de repente lhe ocorreu uma pergunta: Harriet teria sido mesmo tão crente como parecia? Seu interesse pelos estudos bíblicos se revelou no último ano antes de seu desaparecimento. Ela fizera a ligação entre um certo número de citações bíblicas e uma série de assassinatos, a seguir lera com aplicação não somente a Bíblia mas os apócrifos, e se interessara pelo catolicismo.
Teria iniciado a mesma investigação a que Mikael Blomkvist e Lisbeth Salander se dedicavam trinta e sete anos mais tarde? Teria sido a busca de um assassino que estimulara seu interesse, e não a religiosidade? O pastor Falk, em todo caso, dera a entender que ela parecia alguém em busca, e não uma boa cristã.
Suas reflexões foram interrompidas por um chamado de Erika no celular.
— Queria apenas te dizer que eu e Lars vamos tirar férias na semana que vem. Estarei fora por um mês.
— Aonde vocês vão?
— Nova York. Lars tem uma exposição e depois vamos ao Caribe. Um amigo nos emprestou uma casa em Antígua, onde ficaremos duas semanas.
— Maravilha! Divirtam-se. E dê lembranças ao Lars.
— Não tiro férias de verdade há três anos. A próxima edição está pronta e o número seguinte já está quase terminado. Gostaria que você supervisionasse, mas Christer prometeu se encarregar disso.
— Ele pode me chamar, se precisar de ajuda. E como ficou o caso de Janne Dahlman?
Ela hesitou um instante.
— Ele sai de férias na semana que vem. Pus Henry como secretário de redação temporário. Ele e Christer vão conduzir o barco.
— Certo.
— Não confio em Dahlman, mas ele está se esforçando. Estarei de volta no dia 7 de agosto.
Eram cerca de sete da noite, e Mikael havia tentado falar com Cecilia Vanger cinco vezes. Deixara um bilhete na casa dela pedindo que entrasse em contato com ele, mas não obtivera resposta.
Fechou decididamente os apócrifos, vestiu uma roupa esportiva e trancou a porta antes de sair para o seu jogging de todos os dias.
Seguiu pelo caminho estreito ao longo da praia, depois tomou a direção do bosque. Atravessou o mais depressa que pôde uma zona de matagal e árvores desenraizadas até chegar exausto à Fortificação, com a pulsação bastante acelerada. Deteve-se num ponto da trincheira, ao sol, e fez alongamentos por alguns minutos.
De repente, ouviu uma forte detonação, ao mesmo tempo que uma bala atingia a parede de concreto a alguns centímetros de sua cabeça. Depois sentiu uma dor na raiz dos cabelos, onde os estilhaços abriram uma ferida profunda.
Mikael ficou petrificado durante o que lhe pareceu uma eternidade, incapaz de entender o que havia acontecido. Em seguida jogou-se no chão na trincheira, machucando o ombro ao aterrissar. O segundo tiro ocorreu no instante em que mergulhava. A bala cravou-se na parede de concreto, bem no lugar onde ele havia estado.
Mikael levantou a cabeça e olhou em volta. Estava mais ou menos na metade da Fortificação. À direita e à esquerda, passagens estreitas, com profundidade de um metro e cobertas de vegetação, conduziam a abrigos de tiro espalhados numa linha de duzentos e cinquenta metros de comprimento. Pôs-se a correr, curvado, na direção sul do labirinto.
Então, ouviu ressoar dentro dele a voz inimitável do capitão Adolfsson no dia de um exercício de inverno na escola de infantaria em Kiruna. Puta que pariu, Blomkvist, baixe a cabeça se não quiser ter o rabo arrancado por uma bala! Vinte anos depois, se lembrava dos ensinamentos do capitão Adolfsson.
Cerca de sessenta metros adiante, parou, sem fôlego e com o coração palpitando. Não ouvia outros ruídos a não ser o da própria respiração. O olho humano percebe os movimentos mais rapidamente que as formas e as silhuetas. Não fique afoito quando se desloca! Mikael levantou os olhos alguns centímetros acima da borda do abrigo. O sol estava bem à sua frente e o impedia de distinguir os detalhes, mas ele não percebeu nenhum movimento.
Baixou a cabeça e prosseguiu até o último abrigo. Pouco importa se o inimigo tem armas muito boas. Enquanto não puder te ver, ele não pode te tocar. Proteja-se, proteja-se! Não se exponha!
Mikael achava-se agora a uns trezentos metros das terras da fazenda de Östergarden. Quarenta metros à frente, estendia-se um espesso matagal de arbustos. Mas, para alcançar esse matagal partindo da trincheira, ele seria obrigado a descer uma encosta onde estaria totalmente exposto. Era a única saída. Às suas costas havia o mar.