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— Espere! — interrompeu Mikael. — O que é isso na mão dele, Greger?

— Uma coisa quadrada. Parece uma caixinha.

— É uma Hasselblad! Ele também estava com uma máquina fotográfica.

Repassaram as fotos mais uma vez. Greger era visto em várias, mas em geral encoberto. Numa das fotos, via-se claramente que ele tinha uma caixa quadrada na mão.

— Acho que você está certo. É uma máquina fotográfica.

— O que significa que podemos nos lançar a uma outra caça às fotos.

— Vamos deixar isso pra lá por enquanto — disse Lisbeth Salander. — Posso levantar uma hipótese?

— Diga.

— O que acha disto: alguém da jovem geração descobre que alguém da velha geração era um assassino serial, mas não quer que ninguém saiba. A honra da família, et cetera e tal. Isso significaria que existem duas pessoas envolvidas na história, mas que não agem juntas. O assassino pode estar morto há muito tempo, enquanto o nosso perseguidor quer simplesmente que a gente abandone o caso e saia daqui.

— Também pensei nisso — disse Mikael. — Mas, nesse caso, por que pôr um gato esquartejado na nossa porta? É uma referência direta aos assassinatos. — Mikael tocou a Bíblia de Harriet. — Mais uma paródia das leis sobre os sacrifícios por imolação.

Lisbeth Salander inclinou-se para trás e olhou a igreja enquanto citava a Bíblia com ar pensativo. Parecia falar sozinha.

"Depois imolará o novilho diante do Senhor, e os sacerdotes, filhos de Aarão, oferecerão o sangue e o derramarão ao redor sobre o altar que está à entrada da Tenda da Reunião. Depois esfolará a vítima e a cortará em pedaços."

Ela se calou e de repente percebeu que Mikael a olhava com o rosto tenso. Ele abriu a Bíblia no início do Levítico.

— Conhece o versículo 12 também? Lisbeth permaneceu calada.

— A seguir... — começou Mikael, balançando a cabeça para estimulá-la a continuar.

— "A seguir a vítima será cortada em pedaços, com a cabeça e a gordura, que o sacerdote disporá sobre a lenha colocada no fogo do altar." A voz dela estava gelada.

— E o seguinte?

Ela se levantou de repente.

— Lisbeth, você tem memória fotográfica! — exclamou Mikael, estupefato. — É por isso que lê as páginas do inquérito em segundos.

A reação dela foi quase explosiva. Fulminou Mikael com tanta raiva no olhar que ele ficou perplexo. Depois, os olhos de Lisbeth se encheram de desespero; virou-se e saiu correndo em direção ao portão do jardim.

— Lisbeth! — chamou Mikael, completamente atônito.

Ela desapareceu na estrada.

* * *

Mikael levou o computador para dentro de casa, ativou o alarme e trancou a porta antes de sair atrás de Lisbeth. Encontrou-a vinte minutos depois sentada num pontão do porto de recreio molhando os pés na água e fumando um cigarro. Lisbeth o ouviu chegar e ele percebeu os ombros dela se enrijecerem um pouco. Deteve-se a dois metros de onde ela estava.

— Não sei o que fiz de mal, mas não tive a intenção de deixá-la nesse estado.

Ela não respondeu.

Ele se aproximou, sentou-se ao lado dela e pôs docemente a mão sobre o seu ombro.

— Por favor, Lisbeth, fale comigo. Ela virou a cabeça e olhou para ele.

— Não há nada a dizer. Sou um monstro, só isso.

— Eu ficaria feliz se tivesse a metade da sua memória. Ela jogou o toco de cigarro na água.

Mikael permaneceu um bom tempo em silêncio. Que devo dizer? Você é uma menina perfeitamente normal. E qual é o problema se for um pouco diferente? Por que essa auto-imagem te perturba?

— Percebi que você é diferente das outras mulheres desde o primeiro instante em que eu te vi — ele falou. — E vou dizer uma coisa: fazia muito tempo que eu não gostava naturalmente de alguém assim desde o primeiro instante.

Crianças saíram de uma cabana em frente ao porto e se atiraram na água. Eugen Norman, o artista pintor com quem Mikael ainda não trocara uma só palavra, estava sentado numa cadeira diante de sua casa, fumando um cachimbo e observando Mikael e Lisbeth.

— Tenho vontade de ser seu amigo, se me quiser como amigo — disse Mikael. — Mas cabe a você decidir. Vou para casa preparar um café. Volte quando tiver vontade.

Levantou-se e a deixou tranquila. Estava na metade do caminho, na subida, quando ouviu os passos dela às suas costas. Voltaram juntos em silêncio.

Ela se deteve no momento em que chegavam em frente à casa.

— Eu estava pensando... dissemos que tudo é uma paródia da Bíblia. Certo. Ele cortou em pedaços um gato, mas imagino que não era fácil achar um novilho. De todo modo, está seguindo o enredo básico. Eu me pergunto...

Ela levantou os olhos para a igreja.

"...os sacerdotes oferecerão o sangue e o derramarão ao redor sobre o altar que está à entrada da Tenda da Reunião..."

Atravessaram a ponte e subiram em direção à igreja, olhando ao redor. Mikael verificou a porta da igreja: trancada. Continuaram andando mais um pouco, olhando ao acaso os túmulos do cemitério, até chegar à capela situada à beira d'agua. Mikael arregalou os olhos. Não era uma capela, era um jazigo. Acima da porta podia-se ler gravado na pedra o nome Vanger, seguido de uma frase em latim que ele não soube decifrar.

"Para repousar até o fim dos tempos" — disse Lisbeth. Mikael olhou-a admirado. Ela encolheu os ombros.

— Já li essa frase em algum lugar — disse.

Mikael deu uma risada. Ela ficou rígida e a princípio pareceu furiosa, mas logo relaxou ao perceber que ele não tinha zombado dela. A situação é que era cômica.

Mikael verificou a porta. Trancada. Ele refletiu um instante e disse a Lisbeth para sentar-se ali e esperar. Foi bater à porta de Henrik, e Anna Nygren veio abrir. Explicou que queria conhecer a capela mortuária da família Vanger e perguntou onde Henrik guardava a chave. Anna pareceu hesitar, mas cedeu quando Mikael lembrou a ela que trabalhava diretamente para Henrik. Ela foi buscar a chave no gabinete.

No momento em que Mikael e Lisbeth abriram a porta, viram que estavam certos. O fedor de cadáver queimado e de restos carbonizados pairava, pesado, no ar. Mas o torturador do gato não acendera o fogo. Num canto havia um maçarico semelhante ao usado pelos esquiadores para derreter a cera dos esquis. Lisbeth pegou a máquina digital do bolso da saia jeans e tirou algumas fotos. Pegou também o maçarico.

— Pode ser uma prova. Talvez tenha deixado impressões digitais — ela disse.

— Claro, podemos pedir a todos os membros da família Vanger que nos forneçam suas impressões digitais — ironizou Mikael. — Gostaria de vê-la tentando obter as de Isabella.

— Existem meios — retrucou Lisbeth.

No chão havia sangue em abundância e uma tesoura de latoeiro que eles deduziram ter servido para cortar a cabeça do gato.

Mikael olhou ao redor. Um túmulo principal, mais elevado, era certamente o de Alexander Vangeersad; outros quatro, no chão, abrigavam os ancestrais da família. Depois deles, a família Vanger optara, aparentemente, pela cremação. Uns trinta pequenos nichos de parede traziam nomes de membros do clã. Mikael seguiu a história familiar na ordem cronológica e perguntou-se onde estariam enterrados os membros que não tinham lugar na capela — os que talvez não fossem considerados suficientemente importantes.

— Agora temos certeza — disse Mikael, quando atravessaram de volta a ponte. — Estamos atrás de um louco furioso.

— Explique.

Mikael parou no meio da ponte e se apoiou na amurada.

— Se fosse um doido comum que quisesse nos amedrontar, teria matado o gato na sua garagem ou no bosque. Mas ele foi à capela da família. Há algo de compulsivo nisso. Imagine o risco que correu. É verão e as pessoas andam por aí até tarde. O caminho do cemitério é um atalho muito usado pelos habitantes de Hedeby. Mesmo que o sujeito tenha fechado a porta, não é fácil calar um gato e evitar o cheiro de queimado.