Os arquivos permitiram a Lisbeth constatar que a posição de Gottfried Vanger no grupo havia mudado ao longo dos anos. Ele nascera em 1927. Aos vinte anos, conheceu Isabella e logo a engravidou. Martin Vanger nasceu em 1948 e os dois jovens não tiveram outra saída senão casar.
Gottfried tinha vinte e dois anos quando Henrik o introduziu no escritório central do grupo. Era muito talentoso e começavam a considerá-lo um futuro líder. Aos vinte e cinco anos, assegurou um lugar na direção, como diretor adjunto da área de desenvolvimento de empresas. Uma estrela em ascensão.
Em determinado momento, em meados dos anos 1950, sua carreira se interrompeu. Passou a beber. O casamento com Isabella se deteriorava. Os filhos, Martin e Harriet, padeciam com isso. Henrik deu um basta. A carreira de Gottfried atingira seu ponto culminante. Em 1956, outro cargo de diretor adjunto de desenvolvimento foi criado. Dois diretores adjuntos — um que trabalhava e outro que bebia e permanecia ausente por longos períodos.
Mas Gottfried continuava sendo um Vanger, além disso charmoso e bem-falante. De 1957 em diante, sua missão parecia ter sido percorrer o país para inaugurar fábricas, resolver conflitos locais e mostrar a todos que a direção do grupo levava a sério os problemas e se preocupava. Enviamos um de nossos filhos para escutar as queixas de vocês.
Ela descobriu a segunda ligação por volta das seis e meia da tarde. Gottfried havia participado de negociações em Karlstad, onde o grupo Vanger adquirira uma empresa de madeiras para construção. No dia seguinte, a proprietária rural Magda Lovisa Sjöberg foi encontrada assassinada.
A terceira ligação foi descoberta quinze minutos depois. Uddevalla, 1962. No mesmo dia em que Lea Persson desapareceu, o jornal local entrevistava Gottfried acerca de uma possível extensão do porto.
Três horas depois, Lisbeth Salander constatava que Gottfried Vanger, pelo menos em cinco dos oito crimes, estivera nas localidades nos dias que antecediam ou sucediam ao acontecimento. Não obteve nenhuma informação sobre os assassinatos de 1949 e 1954. Examinou uma foto dele num recorte de imprensa. Um homem magro de cabelos castanhos; lembrava um pouco Clark Gable em ...E o vento levou.
Em 1949, Gottfried tinha vinte e dois anos. O primeiro crime ocorreu em terreno conhecido, Hedestad. Rebecka Jacobsson, empregada de escritório do grupo Vanger. Onde se encontraram? O que teria prometido a ela?
Quando Bodil Lindgren quis fechar o local e voltar para casa às sete, Lisbeth lhe respondeu secamente que não havia terminado. Que fosse embora e deixasse uma chave; ela fecharia tudo ao sair. A responsável pelos arquivos ficou tão irritada com o fato de uma moça se achar no direito de lhe dar ordens, que telefonou a Dirch Frode para pedir instruções. Frode decidiu prontamente que Lisbeth podia ficar a noite toda, se julgasse necessário. A srta. Lindgren poderia fazer a gentileza de avisar o guarda do escritório para que a acompanhasse no momento em que ela quisesse sair?
Lisbeth Salander mordeu o lábio inferior. O problema, evidentemente, era que Gottfried se afogara numa noite de bebedeira em 1965, enquanto o último crime ocorrera em Uppsala em fevereiro de 1966. Teria cometido um engano ao incluir a colegial de dezessete anos, Lena Andersson, na lista? Não. A assinatura não era exatamente a mesma, porém a paródia bíblica era idêntica. Havia com certeza uma ligação.
Nove da noite, anoitecia. O ar estava mais fresco e uma chuva miúda começou a cair. Mikael estava sentado na cozinha, tamborilando na mesa com os dedos, quando o Volvo de Martin Vanger atravessou a ponte e desapareceu em direção ao promontório. De certo modo, as coisas estavam caminhando rápido.
Mikael não sabia como agir. Todo o seu corpo ardia de vontade de fazer perguntas — de confrontar. Uma atitude certamente pouco razoável, se suspeitava que Martin Vanger era um louco que assassinara a irmã e uma jovem em Uppsala, além de haver tentado matar o próprio Mikael. Mas Martin Vanger funcionava também como um ímã. E ele não sabia que Mikael sabia. Mikael podia perfeitamente passar na casa dele com um pretexto... digamos, devolver a chave da cabana de Gottfried? Mikael trancou a porta e dirigiu-se ao promontório.
A casa de Harald Vanger estava, como de hábito, mergulhada na mais completa escuridão. Também não havia luzes na casa de Henrik, com exceção de um quarto que dava para o pátio. Anna fora deitar-se. A casa de Isabella, às escuras. Cecilia não estava em casa. Havia luzes no primeiro andar da casa de Alexander Vanger, mas elas estavam apagadas nas duas casas habitadas por pessoas que não pertenciam à família Vanger. Ele não avistou ninguém.
Hesitante, deteve-se diante da casa de Martin Vanger, pegou o celular e digitou o número de Lisbeth Salander. Continuava não atendendo. Desligou o celular para evitar que tocasse.
Luzes estavam acesas no andar de baixo. Mikael atravessou a relva e parou a alguns metros da janela da cozinha, porém não viu nenhum movimento. Contornou a casa detendo-se diante de cada janela, mas não via Martin Vanger. Contudo, percebeu que a porta lateral da garagem estava entreaberta. Não vá fazer uma besteira agora. Mas não resistiu à tentação de dar uma espiada rápida.
A primeira coisa que viu, numa bancada de marceneiro, foi uma caixa aberta com munição para rifle de caça. A seguir, viu dois galões de gasolina no chão, embaixo da bancada. Está preparando outra visita noturna, Martin?
— Entre, Mikael. Vi você na estrada.
O coração de Mikael parou. Ele virou lentamente a cabeça e viu Martin Vanger na penumbra de uma porta que levava ao interior da casa.
— Não conseguiu se conter, precisava vir até aqui, não é mesmo? A voz era calma, quase amistosa.
— Oi, Martin — respondeu Mikael.
— Entre — repetiu Martin. — Por aqui.
Deu um passo para o lado e estendeu a mão esquerda num gesto convidativo. Levantou a mão direita e Mikael viu um reflexo de metal fosco.
— Para a sua informação, é uma Glock. Não faça besteira. A essa distância eu não costumo errar o alvo.
Mikael se aproximou devagar. Quando estava bem perto de Martin Vanger, parou e o olhou nos olhos.
— Eu precisava vir. Tenho uma porção de perguntas a lhe fazer.
— Entendo. Pela porta, venha.
Mikael entrou lentamente na casa. A passagem conduzia ao vestíbulo e depois à cozinha, mas antes de chegar lá Martin o deteve pondo de leve a mão em seu ombro.
— Não, na cozinha não. Entre à direita. Abra a porta ao lado.
O porão. Mikael havia descido metade da escada quando Martin girou um interruptor e as luzes se acenderam. A direita ficava a caldeira. A sua frente, sentiu o cheiro da lavanderia. Martin Vanger o conduziu à esquerda, a um pequeno quarto com velhos móveis e pastas. Bem ao fundo havia outra porta. Uma porta blindada de aço com uma fechadura de segurança.
— Tome — disse Martin, jogando um molho de chaves para Mikael. — Abra.
Mikael abriu a porta.
— Há um interruptor à esquerda. Mikael acabava de abrir a porta do inferno.
Por volta das nove da noite, Lisbeth foi buscar um café e um sanduíche numa máquina automática que havia no corredor dos arquivos. Continuou a folhear velhos documentos, tentando encontrar algum sinal de Gottfried Vanger em Kalmar, em 1954. Não encontrou nada.
Pensou em ligar para Mikael, mas antes de ir embora decidiu dar uma olhada também nos boletins de diretoria; então seria o suficiente para essa noite.
A peça media cerca de cinco metros por dez. Mikael calculou que, geograficamente, ela ficava no lado norte da casa.
Martin Vanger montara com capricho sua câmara de tortura particular. A esquerda, correntes, argolas de metal no teto e no chão, uma mesa com correias de couro onde podia amarrar suas vítimas. Havia também um equipamento de vídeo. E um estúdio de gravação. No fundo da peça via-se uma jaula de aço onde seus hóspedes podiam ficar aprisionados por longos períodos. A direita da porta, uma cama e um aparelho de tevê. Numa prateleira, Mikael viu uma grande quantidade de videocassetes.