— Não, não é nada disso. — Chuck se instalou no parapeito, o que não era habitual nele, porque normalmente lhe dava medo o abismo. — Acabo de descobrir qual é o motivo de tudo isto.
— O que quer dizer? Eu pensava que sabíamos.
— Certo, sabíamos o que os monges estão tentando fazer. Mas não sabíamos por que. É a coisa mais louca…
— Isso eu imagino — grunhiu George.
— …mas o velho me acaba de falar claramente. Sabe que ele aparece a cada tarde para ver como vão saindo as folhas. Pois bem, desta vez parecia bastante excitado ou, pelo menos, mais do que está acostumado a estar normalmente. Quando lhe disse que estávamos no ultimo ciclo, me perguntou, nesse sotaque inglês tão fino que tem, se eu tinha pensado alguma vez no que tentavam fazer. Eu disse que eu gostaria de sabê-lo… e então me explicou.
— Continua; estou entendendo.
— O caso é que eles acreditam que quando tiverem feito a lista de todos os nomes, e admitem que há uns nove trilhões, Deus terá alcançado seu objetivo. A raça humana terá acabado aquilo para o qual foi criada e não terá sentido algum continuar. Certamente, a idéia é algo assim como uma blasfêmia.
— Então que esperam que façamos? Suicidarmo-nos?
— Não há nenhuma necessidade disto. Quando a lista estiver completa, Deus entra em ação, acaba com todas as coisas!
— Oh, já compreendo! Quando terminarmos nosso trabalho, será o fim do mundo.
Chuck deixou escapar uma risadinha nervosa.
— Isto é exatamente o que disse ao Sam. E sabe o que ocorreu? Olhou-me de um modo muito estranho, como se eu tivesse cometido alguma estupidez e disse: “Não se trata de nada tão corriqueiro como isso”.
George pensou durante um momento.
— Isto é o que eu chamo de uma visão ampla do assunto — disse depois. — Mas o que supõe que deveríamos fazer a respeito? Não vejo que isso faça a mínima diferença para nós. Afinal já sabíamos que estavam loucos.
— Sim… mas não percebe o que se pode acontecer? Quando a lista estiver acabada e o plano final não der certo, ou não ocorrer o que eles esperam, seja o que for, podem-nos culpar do fracasso. É nossa máquina que estiveram usando. Esta situação eu não gosto nem um pouco.
— Compreendo — disse George, lentamente. — Há nisso um certo interesse. Mas esse tipo de coisas ocorreu outras vezes. Quando eu era um menino, lá em Louisiana, tínhamos um pregador louco que uma vez disse que o fim do mundo chegaria no domingo seguinte. Centenas de pessoas acreditaram e algumas até venderam suas casas. Entretanto, quando nada aconteceu, não ficaram furiosos, como se pode esperar. Simplesmente, decidiram que o pregador tinha cometido um engano em seus cálculos e seguiram acreditando. Parece-me que alguns deles acreditam ainda.
— Bom, mas isto não é Louisiana, se por acaso ainda não deu conta. Nós não somos mais que dois e monges há a centenas aqui. Eu tenho consideração por eles e sentirei pena pelo velho Sam quando vir seu grande fracasso. Mas de todo modo, eu gostaria de estar em outro lugar.
— Isso eu estive desejando durante semanas. Mas não podemos fazer nada até que o contrato tenha terminado e cheguem os transportes aéreos para nos levar. Claro que — disse Chuck, pensativamente — sempre poderíamos tentar uma ligeira sabotagem.
— E isso só pioraria as coisas.
— O que eu quis dizer não foi isso. Olha — Funcionando as vinte e quatro horas do dia, tal como está fazendo, a máquina terminará seu trabalho dentro de quatro dias a partir de hoje. O transporte chegará dentro de uma semana. Pois bem, tudo o que precisamos fazer é encontrar algo que tenha que ser reparado, quando fizermos uma revisão; algo que interrompa o trabalho durante um par de dias. Nós consertaremos, certamente, mas não com muita pressa. Se calcularmos bem o tempo, poderemos estar no aeródromo quando o último nome ficar impresso no registro. Então já não nos poderão agarrar.
— Não gosto da idéia — disse George. — Seria a primeira vez que abandonei um trabalho. Além disso, faria-lhes suspeitar. Não; vamos ficar e aceitar o que vier.
— Ainda não gosto dessa disso — disse ele, sete dias mais tarde, enquanto os pequenos mas resistentes cavalinhos de montanha os levavam para baixo, serpenteando pela estrada. — E não pense que fujo porque tenho medo. O que passa é que sinto pena desses infelizes e não quero estar junto deles quando perceberem quão tolos foram. Pergunto-me como vai ser com Sam.
— É curioso — replicou Chuck — mas quando lhe disse adeus, tive a sensação de que ele sabia que nós partíamos e que não lhe importava, porque sabia também que a máquina funcionava bem e que o trabalho ficaria muito em breve acabado. depois disso… claro que, para ele, já não há nenhum depois…
George se voltou na cadeira e olhou para trás, atalho acima.
Era o último sítio de onde se podia contemplar com claridade o monastério. A silhueta dos achaparrados e angulares edifícios se recortava contra o céu crepuscular: aqui e alí se viam luzes que resplandeciam como as janelas do flanco de um transatlântico. Luzes elétricas, certamente, compartilhando o mesmo circuito que o Mark V. Quanto tempo seguiriam compartilhando? perguntou-se George. Destroçariam os monges o computador, levados pelo furor e o desespero? Ou se limitariam a ficar tranqüilos e começariam de novo todos seus cálculos?
Sabia exatamente o que estava passando no alto da montanha naquele mesmo momento.
O grande lama e seus ajudantes estariam sentados, vestidos com suas túnicas de seda e inspecionando as folhas de papel, enquanto os monges principiantes as tiravam das máquinas de escrever e as pregavam aos grandes volumes.
Ninguém diria uma palavra.
O único ruído seria o incessante golpear das letras sobre o papel, porque o Mark V era por si completamente silencioso, enquanto efetuava seus milhares de cálculos por segundo.
Três meses assim, pensou George, era para subir pelas paredes.
— Ali está! — gritou Chuck, assinalando abaixo para o vale. — Não é belo!?
Certamente era, pensou George. O velho DC3 estava no final da pista, como uma pequena cruz de prata. Dentro de duas horas os estaria levando para a liberdade e a sensatez.
Era algo assim como saborear um licor de qualidade. George deixou que o pensamento lhe enchesse a mente, enquanto o cavalinho avançava pacientemente para baixo.
A rápida chegada da noite nas alturas do Himalaia quase lhes caia em cima. Felizmente, o caminho era muito bom, como a maioria dos da região e eles foram equipados com lanternas.
Não havia o mais ligeiro perigo: só certo desconforto causado pelo intenso frio. O céu estava perfeitamente iluminado pelas familiares e amistosas estrelas. Pelo menos, pensou George, não haveria risco de que o piloto não pudesse decolar por conta das condições do tempo.
Esta tinha sido sua ultima preocupação.
Ficou a cantar, mas deixou disso logo. O vasto cenário das montanhas, brilhando por toda parte como fantasmas brancos e encapuzados, não o animava a cantar.
De repente, George consultou seu relógio.
— Estaremos lá dentro de uma hora — disse voltando-se para Chuck. Depois, pensando em outra coisa, acrescentou: — Pergunto-me se o ordenador terá terminado seu trabalho. Estava calculado para esta hora.
Chuck não respondeu; assim George se voltou completamente para si. Pôde ver a cara do Chuck; era um oval branco voltado para o céu.
— Olhe — sussurrou Chuck; George elevou a vista para o espaço.
Sempre há uma última vez para tudo.
Viram sem nenhuma comoção… as estrelas estavam apagando-se.