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Aqui e ali, um archote ardia, faminto, derramando o seu brilho avermelhado pelas caras dos convidados do casamento. O modo como as névoas refletiam a luz mutável fazia com que os rostos parecessem animalescos, semi-humanos, retorcidos. O Lorde Stout transformara-se num mastim, o velho Lorde Locke num abutre, o Terror-das-Rameiras Umber numa gárgula, o Walder Grande Frey numa raposa, o Walder Pequeno num touro vermelho, faltando-lhe apenas uma argola para o nariz. A cara de Roose Bolton era uma máscara cinzenta clara, com duas lascas de gelo sujo onde os olhos deviam estar. Por cima das cabeças, as árvores estavam cheias de corvos, de penas eriçadas enquanto se acocoravam em ramos despidos e castanhos, fitando as cerimónias que se desenrolavam lá em baixo. As aves do Meistre Luwin. Luwin estava morto, e a sua torre de meistre fora passada pelo archote, mas os corvos permaneciam. Este é o seu lar. Theon perguntou a si próprio como seria ter um lar.

Então as névoas abriram-se, como a cortina que corria num espetáculo de saltimbancos para revelar um novo palco. A árvore coração apareceu à frente deles, com os ramos ossudos muito abertos. Folhas caídas jaziam em volta do largo tronco branco, em montes de vermelho e castanho. Era aí que os corvos eram em maior número, resmungando uns com os outros na língua secreta do bando. Ramsay Bolton estava por baixo das aves, trazendo botas de cano alto de couro mole e cinzento e um gibão de veludo negro cortado de seda rosa e que cintilava com lágrimas de granada.

Um sorriso dançava-lhe na cara.

— Quem vem lá? — Os seus lábios estavam húmidos, o pescoço cinzento por cima do colarinho. — Quem vem apresentar-se ao deus?

Theon respondeu.

— É Arya da Casa Stark quem aqui vem para ser casada. Uma mulher feita e florescida, de nascimento legítimo e nobre, vem suplicar a bênção dos deuses. Quem vem reclamá-la?

— Eu — disse Ramsay. — Ramsay da Casa Bolton, Senhor de Boscorno, herdeiro do Forte do Pavor. Reclamo-a. Quem a entrega?

— Theon da Casa Greyjoy, que foi protegido do seu pai. — Virou-se para a noiva. — Senhora Arya, aceitais este homem?

Ela ergueu os olhos para os seus. Olhos castanhos, não cinzentos. Serão todos eles assim tão cegos? Durante um longo momento a rapariga não falou, mas aqueles olhos suplicavam. É esta a tua oportunidade, pensou.

Diz-lhes. Diz-lhes agora. Grita o teu nome perante todos, diz-lhes que não és Arya Stark, deixa que todo o Norte ouça como foste obrigada a desempenhar este papel. Isso significaria a sua morte, claro, e a dele também, mas Ramsay, na sua fúria, talvez os matasse depressa. Os velhos deuses do Norte poderiam conceder-lhes essa pequena mercê.

— Aceito este homem — disse a noiva, num murmúrio.

A toda a volta deles, luzes tremeluziram por entre as névoas; uma centena de velas, pálidas como estrelas amortalhadas. Theon recuou, e Ramsay e a noiva juntaram as mãos e ajoelharam perante a árvore coração, baixando as cabeças em sinal de submissão. Os rubros olhos esculpidos do represeiro fitaram-nos, com a sua grande boca vermelha aberta como que para soltar uma gargalhada. Nos ramos, mais acima, um corvo soltou um cuorc.

Após um momento de oração silenciosa, o homem e a mulher voltaram a levantar-se. Ramsay desprendeu o manto que Theon pusera aos ombros da noiva momentos antes, o pesado manto de lã branca debruado com pele cinzenta e decorado com o lobo gigante da Casa Stark. No seu lugar prendeu um manto cor-de-rosa salpicado de granadas vermelhas como as que tinha no gibão. Nas costas do manto via-se o homem esfolado do Forte do Pavor, feito de rígido couro vermelho, sombrio e macabro.

E foi assim de repente que ficou feito. Os casamentos eram mais rápidos no Norte. Theon supunha que isso provinha de não terem sacerdotes, mas fosse qual fosse a razão pareceu-lhe uma misericórdia. Ramsay Bolton pôs a mulher ao colo e atravessou com ela as névoas a passos largos. O Lorde Bolton e a sua Senhora Walda seguiram-nos, e os outros foram atrás. Os músicos recomeçaram a tocar, e o bardo Abel pôs-se a cantar “Dois Corações que Batem Como um Só.” Duas das suas mulheres juntaram as vozes à dele para criar uma doce harmonia.

Theon deu por si a pensar se deveria fazer uma prece. Ouvir-me-ão os deuses antigos se o fizer? Não eram os seus deuses, nunca tinham sido os seus deuses. Ele era nascido no ferro, um filho de Pyke, o seu deus era o Deus Afogado das ilhas… mas Winterfell ficava a longas léguas do mar.

Passara-se uma vida desde que algum deus o ouvira. Não sabia quem era, ou o que era, porque continuava vivo, para que nascera, até.

— Theon — pareceu sussurrar uma voz.

Ergueu a cabeça num movimento brusco.

— Quem disse isso? — Nada conseguia ver além das árvores e do nevoeiro que as cobria. A voz fora ténue como o roçagar de folhas, fria como o ódio. Uma voz de deus, ou de fantasma. Quantos tinham morrido no dia em que tomara Winterfell? Quantos mais no dia em que perdera o castelo? No dia em que Theon Greyjoy morreu, para renascer como Cheirete. Cheirete, Cheirete, rima com falsete.

De súbito deixou de querer estar ali.

Depois de sair do bosque sagrado, o frio desceu sobre ele como um lobo voraz e agarrou-o com os dentes. Baixou a cabeça contra o vento e dirigiu-se para o Grande Salão, apressando-se a seguir a longa fila de velas e archotes. Gelo rangia sob as botas, e uma súbita rajada empurrou-lhe o capuz para trás, como se um fantasma o tivesse puxado com dedos gelados, faminto por lhe fitar a cara.

Winterfell estava cheio de fantasmas para Theon Greyjoy.

Aquele não era o castelo que recordava do verão da juventude. Aquele lugar estava marcado e quebrado, mais ruína do que reduto, um antro de corvos e cadáveres. A grande muralha exterior dupla ainda estava em pé, pois o granito não cede facilmente ao fogo, mas a maior parte das torres e edifícios no interior estavam sem telhados. Alguns desses edifícios tinham ruído. O colmo e a madeira tinham sido consumidos pelo fogo, no todo ou em parte, e sob as vidraças estilhaçadas do Jardim de Vidro os frutos e legumes que teriam alimentado o castelo durante o inverno estavam mortos, negros e congelados. Tendas enchiam o pátio, meio enterradas na neve.

Roose Bolton trouxera a sua hoste para o interior das muralhas, juntamente com os seus amigos, os Frey; eram milhares os que se aninhavam entre as ruínas, enchendo todos os pátios, dormindo em adegas e sob torres sem cobertura, e em edifícios que estavam abandonados há séculos.

Colunas de fumo cinzento serpenteavam das cozinhas reconstruídas e da fortaleza das casernas, cujo telhado fora recuperado. As ameias e as seteiras estavam coroadas de neve e decoradas com pingentes de gelo.

Toda a cor fora sugada de Winterfell até só restarem o cinzento e o branco. As cores dos Stark. Theon não sabia se devia achar isso de mau agouro ou animador. Até o céu estava cinzento. Cinzento, cinzento e mais cinzento. O mundo inteiro cinzento, para onde quer que se olhe, tudo cinzento exceto os olhos da noiva. Os olhos da noiva eram castanhos. Grandes e castanhos e cheios de medo. Não estava certo que a rapariga procurasse nele salvação. Que julgara, que ele assobiaria para chamar um cavalo alado e a levaria dali a voar, como um qualquer herói das histórias que ela e Sansa adoravam? Nem a si próprio conseguia ajudar. Cheirete, Cheirete, rima com tapete.

Por todo o lado, no pátio, mortos pendiam meio congelados da ponta de cordas de cânhamo, com as caras inchadas brancas de geada. Winterfell estivera repleto de habitantes ilegítimos quando a vanguarda de Bolton chegara ao castelo. Mais de duas dúzias tinham sido tiradas à força dos ninhos que tinham feito por entre as torres e fortalezas semiarruinadas. Os mais ousados e truculentos tinham sido enforcados, os outros postos a trabalhar. Lorde Bolton dissera-lhes que, se servissem bem, seria misericordioso. Havia fartura de pedra e madeira com a mata de lobos tão próxima.