Uma rapariga cinzenta num cavalo moribundo, a fugir do casamento.
Com base na força daquelas palavras, deixara Mance Rayder e seis esposas de lanças à solta no norte.
— Jovens, e bonitas — dissera Mance. O rei não queimado fornecera alguns nomes, e o Edd Doloroso fizera o resto, fazendo-as sair à socapa de Vila Toupeira. Agora parecia uma loucura. Poderia ter feito melhor se tivesse abatido Mance no momento em que ele se revelara. Jon sentia uma certa admiração involuntária pelo antigo Rei-para-lá-da-Muralha, mas o homem era um perjuro e um vira-mantos. Tinha ainda menos confiança em Melisandre. No entanto, sem saber bem como, ali estava, a depositar neles a sua esperança. Tudo para salvar a minha irmã. Mas os homens da Patrulha da Noite não têm irmãs.
Quando Jon fora rapaz em Winterfell, o seu herói fora o Jovem Dragão, o rei rapaz que conquistara Dorne aos catorze anos de idade. Apesar do seu nascimento bastardo, ou talvez por causa dele, Jon Snow sonhara liderar homens até à glória tal como o Rei Daeron fizera, sonhara crescer para se tornar um conquistador. Agora era um homem feito e a Muralha era sua, mas tudo o que tinha era dúvidas. Nem sequer parecia ser capaz de as conquistar a elas.
DAENERYS
O fedor do acampamento era tão espantoso que Dany só com dificuldade evitou vomitar.
Sor Barristan franziu o nariz e disse:
— Vossa Graça não devia estar aqui, a respirar estes humores negros.
— Sou do sangue do dragão — fez-lhe lembrar Dany. — Alguma vez vistes um dragão com uma fluxão? — Viserys afirmara com frequência que os Targaryen não eram tocados pelas pestilências que afligiam os homens comuns e, tanto quanto ela soubesse, era verdade. Conseguia lembrar-se de ter frio, fome e medo, mas nunca de estar doente.
— Mesmo assim — disse o velho cavaleiro — sentir-me-ia melhor se Vossa Graça regressasse à cidade. — As muralhas de tijolos multicoloridos de Meereen estavam meia milha atrás deles. — A fluxão sangrenta tem sido a perdição de todos os exércitos desde a Era da Alvorada. Deixai que sejamos nós a distribuir a comida, Vossa Graça.
— Amanhã. Agora estou aqui. Quero ver. — Encostou os calcanhares à sua prata. Os outros trotaram atrás dela. Jhogo cavalgava à sua frente, Aggo e Rakharo logo atrás, com longos chicotes dothraki nas mãos a fim de manterem afastados os doentes e os moribundos. Sor Barristan estava à sua direita, montado num cavalo cinzento pintalgado. À sua esquerda seguia Symon Dorsolistado, dos Irmãos Livres, e Marselen, dos Homens da Mãe.
Três vintenas de soldados seguiam logo atrás dos capitães, a fim de protegerem as carroças de comida. Todos a cavalo, dothraki, Feras de Bronze e libertos, eram unidos apenas pelo desagrado que lhes causava aquele dever.
Os astapori tropeçavam atrás deles numa horrenda procissão que se tornava mais longa a cada metro. Alguns falavam línguas que Dany não compreendia. Outros já nem falar conseguiam. Muitos erguiam as mãos para Dany, ou ajoelhavam-se quando a sua prata por eles passava.
— Mãe — gritavam-lhe nos dialetos de Astapor, de Lys e da Velha Volantis, no gutural dothraki e nas sílabas líquidas de Qarth, até no idioma comum de Westeros. — Mãe, por favor… mãe, ajudai a minha irmã, ela está doente… dai-me comida para os meus pequeninos… por favor, o meu velho pai… ajudai-o… ajudai-a… ajudai-me…
Não tenho mais ajuda para dar, pensou Dany, desesperando. Os astapori não tinham lugar para onde ir. Milhares permaneciam fora das espessas muralhas de Meereen; homens e mulheres e crianças, velhos e rapariguinhas e bebés recém-nascidos. Muitos estavam doentes, a maior parte estava morta de fome, e todos estavam condenados a morrer. Daenerys não se atrevia a abrir os portões para os deixar entrar. Tentara fazer por eles o que podia. Enviara-lhes curandeiros, Graças Azuis, cantores-feiticeiros e barbeiros-cirurgiões, mas alguns destes tinham também adoecido e nenhuma das suas artes abrandara o progresso galopante da fluxão que chegara na égua branca. Separar os saudáveis dos doentes também se revelara impraticável. Os seus Escudos Vigorosos tinham tentado, arrancando maridos de junto de mulheres e crianças dos braços das mães, enquanto os astapori choravam, esperneavam e os crivavam de pedras. Alguns dias mais tarde, os doentes estavam mortos e os saudáveis doentes. Separar uns dos outros nada alcançara.
Até alimentá-los se tornara difícil. Todos os dias lhes enviava o que podia, mas todos os dias eles eram mais e havia menos comida para lhes dar. Também se estava a tornar mais difícil encontrar condutores de carroças dispostos a entregar a comida. Demasiados dos homens que tinham enviado aos acampamentos tinham também sido atingidos pela fluxão.
Outros haviam sido atacados no regresso à cidade. Na véspera, uma carroça fora virada e dois dos seus soldados tinham sido mortos, portanto hoje a rainha determinara que traria a comida em pessoa. Todos os seus conselheiros haviam argumentado fervorosamente contra a ideia, de Reznak e do Tolarrapada a Sor Barristan, mas Daenerys não se deixara convencer.
— Não lhes virarei as costas — dissera, obstinada. — Uma rainha deve conhecer o sofrimento do seu povo.
Sofrimento era a única coisa que não lhes faltava.
— Já quase não resta um cavalo ou uma mula, apesar de muitos terem vindo montados desde Astapor — informou-a Marselen. — Comeram-nos a todos, Vossa Graça, juntamente com todas as ratazanas e cães vadios que conseguiram apanhar. Agora, alguns começaram a comer os seus próprios mortos.
— O homem não deve comer a carne do homem — disse Aggo.
— É sabido — concordou Rakharo. — Serão amaldiçoados.
— Eles já estão para lá das maldições — disse Symon Dorsolistado.
Criancinhas com estômagos inchados seguiam-nos, demasiado fracas ou assustadas para pedir. Homens descarnados com olhos afundados acocoravam-se entre areia e pedras, cagando as suas vidas em ribeiros nauseabundos de castanho e vermelho. Muitos cagavam agora onde dormiam, demasiado débeis para se arrastarem até às fossas que ela lhes ordenara que cavassem. Duas mulheres lutavam por um osso carbonizado. Ali perto um rapaz de dez anos comia uma ratazana. Comia com uma mão, segurando com a outra num pau aguçado para o caso de alguém tentar arrancar-lhe a presa. Mortos por enterrar jaziam por todo o lado. Dany viu um homem estatelado na poeira sob um manto negro, mas quando passou por ele o manto dissolveu-se num milhar de moscas. Mulheres esqueléticas sentavam-se no chão, agarradas a bebés moribundos. Os seus olhos seguiram-na. Aquelas que tinham força para tanto chamaram.
— Mãe… por favor, Mãe… que sejais abençoada, Mãe…
Que seja abençoada, pensou Dany com amargura. A tua cidade desapareceu em cinzas e ossos, o teu povo está a morrer à tua volta, não tenho abrigo para te dar, não tenho remédios, não tenho esperança. Só pão bolorento e carne cheia de vermes, queijo duro, um pouco de pão. Abençoada seja, abençoada seja.
Que tipo de mãe não tem leite para alimentar os seus filhos?
— Demasiados mortos — disse Aggo. — Deviam ser enterrados.
— Quem os enterrará? — perguntou Sor Barristan. — A fluxão sangrenta está por todo o lado. Morrem cem todas as noites.
— Não é bom tocar os mortos — disse Jhogo.
— Isso é sabido — disseram Aggo e Rakharo, juntos.
— Pode ser que sim — disse Dany — mas é algo que tem de ser feito na mesma. — Pensou por um momento. — Os Imaculados não têm medo de cadáveres. Vou falar com o Verme Cinzento.
— Vossa Graça — disse Sor Barristan — os Imaculados são os vossos melhores combatentes. Não nos atrevemos a deixar a praga à solta entre eles. Deixai que os astapori enterrem os seus próprios mortos.