— Fui eu quem inventou esse nome. A cara dela era comprida e cavalar. A minha não é. Eu era bonita. — Lágrimas jorraram-lhe finalmente dos olhos. — Nunca fui bela como Sansa, mas todos diziam que era bonita.
O Lorde Ramsay acha-me bonita?
— Sim — mentiu Theon. — Ele disse-me isso.
— Mas ele sabe quem eu sou. Quem sou realmente. Vejo-o quando olha para mim. Parece tão zangado, mesmo quando sorri, mas a culpa não é minha. Dizem que ele gosta de fazer mal às pessoas.
— A senhora não devia dar ouvidos a tais… mentiras.
— Dizem que vos fez mal a vós. Às vossas mãos, e…Theon tinha a boca seca.
— Eu… eu mereci-o. Fi-lo zangar-se. Não podeis fazê-lo zangar-se. O Lorde Ramsay é… um homem carinhoso e bondoso. Agradai-lhe, e ele será bom para vós. Sede uma boa esposa.
— Ajudai-me. — Ela agarrou-o. — Por favor. Eu costumava observar-vos no pátio, a jogar com as vossas espadas. Vós éreis tão bonito. — Apertou-lhe o braço. — Se fugíssemos, podia ser a vossa esposa, ou a vossa… a vossa rameira… tudo o que quisésseis. Podíeis ser o meu homem.
Theon arrancou o braço das mãos dela.
— Eu não sou… não sou homem de ninguém. — Um homem ajudá-la-ia. — Só… sede só Arya, sede a mulher dele. Agradai-lhe, senão…
agradai-lhe só, e parai com esta conversa sobre serdes outra pessoa. — Jeyne, o nome dela é Jeyne, combina com mágoa. A música estava a tornar-se mais insistente. — Está na hora. Limpai essas lágrimas dos olhos. — Olhos castanhos. Deviam ser cinzentos. Alguém verá. Alguém se lembrará. — Ótimo. Agora sorri.
A rapariga tentou. O seu lábio, a tremer, torceu-se para cima e congelou, e Theon viu-lhe os dentes. Uns bonitos dentes brancos, pensou, mas se o enfurecer não permanecerão bonitos por muito tempo. Quando abriu a porta, três das quatro velas apagaram-se. Levou a noiva para o meio da neblina, onde os convidados do casamento aguardavam.
— Porquê eu? — perguntara quando a Senhora Dustin lhe dissera que tinha de entregar a noiva.
— O pai dela está morto e todos os irmãos também. A mãe faleceu nas Gémeas. Os tios estão perdidos, mortos ou cativos.
— Ainda tem um irmão. — Ainda tem três irmãos, poderia ele ter dito. — Jon Snow está na Patrulha da Noite.
— Um meio-irmão, de nascimento bastardo e vinculado à Muralha.
Vós éreis protegido do pai, aquilo que mais se aproxima de um familiar sobrevivente. É adequado que sejais vós a entregar a mão dela em casamento.
Aquilo que mais se aproxima de um familiar sobrevivente. Theon Greyjoy crescera com Arya Stark. Theon teria reconhecido uma impostura.
Se fosse visto a aceitar a rapariga fi ngida dos Bolton como Arya, os senhores do Norte que se haviam reunido para testemunhar a união não teriam base para questionar a sua legitimidade. Stout e Slate, o Terror-das-Rameiras Umber, os quezilentos Ryswell, homens de Hornwood e primos dos Cerwyn, o gordo Lorde Manderly… nenhum conhecera as filhas de Ned Stark tão bem como ele, nem de perto, nem de longe. E se alguns nutrissem dúvidas em privado, decerto que seriam sufi cientemente sensatos para guardar tais desconfianças para si.
Estão a usar-me para esconder o engano, pondo a minha cara na sua mentira. Fora por isso que Roose Bolton voltara a vesti-lo de senhor; para desempenhar o seu papel naquela farsa de saltimbanco. Uma vez isso feito, uma vez a falsa Arya casada e desflorada, Bolton não teria mais utilidade para Theon Vira-Mantos.
— Servi-nos nisto, e quando Stannis for derrotado discutiremos a melhor maneira de recuperar para vós os domínios do vosso pai — dissera sua senhoria numa voz baixa, uma voz feita para mentiras e sussurros. Theon nunca acreditara numa palavra. Dançaria aquela dança para eles, porque não tinha alternativa, mas depois… Depois, ele vai devolver-me a Ramsay, pensou, e Ramsay tirar-me-á mais alguns dedos, e voltará a transformar-me em Cheirete. A menos que os deuses fossem bondosos e Stannis Baratheon caísse sobre Winterfell e os passasse a todos pela espada, incluindo ele próprio. Isso era o melhor que poderia esperar.
Estava menos frio no bosque sagrado, por estranho que parecesse.
Para lá dos limites do bosque, um frio duro e branco prendia Winterfell. Os caminhos estavam traiçoeiros com gelo negro, e geada cintilava ao luar nas vidraças quebradas dos Jardins de Vidro. Montes de neve suja tinham-se empilhado contra as paredes, enchendo todos os escaninhos e recantos. Alguns eram tão altos que escondiam as portas atrás deles. Sob a neve jazia cinza e carvões negros, e aqui e ali uma trave enegrecida ou uma pilha de ossos adornada com farrapos de pele e cabelo. Pingentes longos como lanças pendiam das ameias e orlavam as torres como as rígidas suíças brancas de um velho. Mas no interior do bosque sagrado, o chão mantinha-se livre de gelo, e vapor erguia-se das lagoas de água quente, tépido como o hálito de um bebé.
A noiva estava vestida de branco e cinzento, as cores que a verdadeira Arya teria usado se tivesse vivido o sufi ciente para casar. Theon usava negro e dourado, e o seu manto estava-lhe preso ao ombro por uma tosca lula gigante de ferro que um ferreiro lhe fizera em Vila Acidentada. Mas, sob o capuz, o cabelo estava branco e fino e a pele tinha o tom acinzentado da de um velho. Finalmente um Stark, pensou. De braços dados, ele e a noiva passaram por uma porta arqueada de pedra, enquanto farrapos de névoa se agitavam em volta das suas pernas. O tambor era trémulo como um coração de donzela, as flautas agudas, doces e chamativas. Por cima das copas das árvores, um crescente de Lua flutuava num céu escuro, semiobscurecido pela névoa, como um olho a espreitar através de um véu de seda.
O bosque sagrado não era estranho a Theon Greyjoy. Tinha brincado
ali em rapaz, fazendo saltar pedras na fria lagoa negra à sombra do represeiro, escondendo os seus tesouros no tronco de um antigo carvalho, caçando esquilos com um arco que fora ele próprio a fazer. Mais tarde, mais velho, ensopara as nódoas negras nas nascentes quentes depois de muitas sessões no pátio com Robb, Jory e Jon Snow. Entre aqueles castanheiros, ulmeiros e pinheiros marciais descobrira lugares secretos onde podia esconder-se quando desejava ficar sozinho. A primeira vez que beijara uma rapariga fora ali. Mais tarde, outra rapariga fizera dele um homem em cima de uma colcha esfarrapada à sombra daquela grande sentinela verde-acinzentada.
Nunca vira o bosque sagrado assim, porém; cinzento e fantasmagórico, cheio de névoas mornas e luzes flutuantes e vozes murmuradas que pareciam vir de todo o lado e de lugar algum. Por baixo das árvores, as nascentes quentes fumegavam. Vapores quentes erguiam-se da terra, amortalhando as árvores no seu hálito húmido, subindo pelas paredes para irem fechar cortinas cinzentas nas janelas que as observavam.
Havia uma espécie de caminho, um carreiro sinuoso de pedras rachadas cobertas de musgo, meio enterrado debaixo de terra soprada pelo vento e folhas caídas, e tornado traiçoeiro por grossas raízes castanhas que empurravam de baixo. Levou a noiva ao longo desse carreiro. Jeyne, o nome dela é Jeyne, combina com mágoa. Mas não podia pensar aquilo. Se esse nome lhe cruzasse os lábios, isso poderia custar-lhe um dedo, ou uma orelha. Caminhou lentamente, com cautela em cada passo. Os dedos que lhe faltavam nos pés faziam-no mancar quando se apressava, e não seria bom tropeçar. Se estragasse o casamento do Lorde Ramsay com um passo em falso, o Lorde Ramsay poderia retificar essa falta de jeito esfolando o pé culpado.
As névoas eram tão densas que só as árvores mais próximas estavam visíveis; atrás delas erguiam-se sombras altas e luzes ténues. Velas tremeluziam ao lado do caminho errante e recuavam por entre as árvores, pálidos pirilampos que flutuavam numa sopa morna e cinzenta. Parecia uma espécie de estranho submundo, um qualquer lugar sem tempo entre os mundos por onde os danados vagueassem funebremente durante algum tempo até encontraram o caminho para o inferno que os seus pecados lhes haviam garantido. Quererá dizer que estamos todos mortos? Terá Stannis chegado e ter-nos-á matado enquanto dormíamos? Estará a batalha ainda por chegar, ou terá sido já travada e perdida?