Tivemos nossas primeiras chuvas em forma de tempestades, o que tornou o tempo confuso por uma dúzia de dias. Tivemos também as primeiras noites totais, embora breves. Não posso descrever a impressão que em mim produziram as constelações que iam ser as nossas para sempre.
Nós, os membros do Conselho, havíamos tomado como costume nos reunirmos em sessções privadas na casa do meu tio, ou na do povoado, ou, mais frenquentemente, na do observatório, novamente restaurado. Ali encontrávamos Vandal e Massacre, absorvidos no estudo das hidras, com Breffort de ajudante, Martina, Beauvin, sua mulher, meu irmão e Menard, quando conseguíamos arrancá-lo da sua máquina de calcular. Se nos Conselhos oficiais Louis usava a batuta nas coisas práticas, aqui, onde se falava muito mais de ciência ou de filosofia, meu tio, com sua ampla erudição, era o chefe indiscutível do grupo. Menard, de vez em quando, falava tambem, e todos ficávamos assombrados pela amplitude das concepções que desenvolvia esse homenzinho com barba de criança. Guardo excelentes recordações dessas reuniões, pois foi ali onde realmente conheci Martina.
Uma tarde, eu regressava muito satisfeito, pois a uns quilômetros da zona morta, em solo teluriano, havia encontrado excelente minério de ferro no fundo de um barranco.
Para dizer a verdade, não fui eu mesmo que descobri. Um dos homens da minha escolta me trouxe um pedaço, perguntando-me o que era.
Em uma curva do caminho encontrei Martina.
— Eu vinha precisamente te buscar.
— Estou voltando atrasado?
— Não, os outros estão no Observatório, onde Menard lhes explica uma descoberta.
— E tu vieste buscar-me? — perguntei lisonjeado — Ah! Não tem graça. É que aquilo não me interessa, fui eu quem descobriu.
— De que se trata?
— Trata-se de…
Naquele dia não devia me inteirar do assunto. Enquanto falava, Martina havia levantado a vista. Ficou de boca aberta e com um indizível horror no seu rosto. Me voltei: uma hidra gigantesca lançava-se sobre nós!
No último instante recobrei o controle próprio, joguei Martina no solo, jogando-me ao seu lado. A hidra roçou por nós, mas falhou o golpe. Levada por sua velocidade, voou ainda mais cem metros antes de poder voltar-se. Me pus em pé de um salto.
— Corre para o povoado! Há árvores ao lado da estrada!
— E tu?
— Vou distraí-la. Eu a acertarei, com certeza, com minha pistola.
— Não, eu fico também!
— Santo Deus, corre!
Era muito tarde para fugir. Eu sabia que com minha pistola tinhas poucas probabilidades de matar o monstro. Em uma rocha se abria uma cavidade. Empurrei Martina com força para lá e me pus diante dela. Antes que a hidra tivesse tempo de projetar seu dardo, disparei cinco balas: devem ter surtido efeito, pois o animal ondulou com um silvo e afastou-se. Me restavam três balas e minha faca, uma longa faca sueca, que eu conservava afiada como uma navalha. A hidra se colocou na nossa frente: seus tentáculos se moviam como os de um polvo, seus seis olhos glaucos e fixos nos observavam. A uma ligeira contração do cone central, tive a sensação de que o dardo ia partir. Fiz uso de minhas três últimas balas e, depois, faca na mão, cabeça abaixada, ataquei entre os tentáculos. Da parte inferior do monstro, agarrei um dos braços e puxei com força. Apesar da atroz queimadura em uma mão, eu segurei-a. Desequilibrado, o animal lançou seu dardo, que não alcançou Martina, e sua extremidade córnea bateu contra a rocha. No mesmo instante, agarrado ao flanco do monstro, eu o salpicava de golpes de faca. Depois disso minhas recordações são confusas. Só me recordo da raiva crescente, dos pedaços de carne ignóbeis contra meu rosto, a sensação de desequilíbrio, uma queda lenta, um choque. Isto é tudo.
Despertei em uma cama, na casa do meu tio. Massacre e meu irmão cuidavam de mim. Minhas mãos estavam vermelhas e inchadas e o lado esquerdo do meu rosto coçava.
— E Martina? — perguntei.
— Não sofreu nada. Uma ligeira comoção nervosa. — respondeu Massacre — Administrei— lhe um soporífero.
— E eu?
— Queimaduras, o ombro esquerdo deslocado, não tem grandes contusões. Um arbusto amortizou o choque. Recoloquei seu ombro durante o desmaio do qual agora se acordou. Na melhor das hipóteses voce tem duas semanas para recuperar-se.
— Quinze dias! Com tantas coisas para fazer! Acabo de encontrar minério de ferro.
Uma violenta dor me atravessou as mãos.
— Ouça doutor, não tem nada contra este veneno? Isto está queimando muito.
A porta abriu-se com violência. Michel precipitou-se dentro do quarto. Vinha em minha direção com as mãos estendidas. Quando viu minhas mãos vendadas, se deteve de chofre.
— Doutor?
— Não será nada.
— Querido amigo! Sem ti eu teria perdido minha irmã!
— Não querias que nos deixássemos comer por aquela espécie de polvo que se equivocou de ambiente, não é verdade? — disse eu tentando brincar — A propósito, ela está morta?
— Morta? Eu creio que sim. A transformaste em lama. Realmente, não sei com te agradecer.
— Não se preocupe. Neste mundo terás certamente ocasiões para corresponder.
— E agora, — disse Massacre — Deve dormir. Provavelmente terás um pouco de febre.
Saíram silenciosamente.
Quanto Michel estava abrindo a porta, pedi-lhe: — Amanhã pela manhã, chama-me Beltaire.
Caí em um sono agitado, do qual só saí umas horas mais tarde, esgotado porém sem febre. Voltei a dormir aprazivelmente e despertei muito tarde na manhã seguinte.
A dor das minhas mãos e do meu rosto haviam diminuído muito. Na cadeira, Michel dormia, dobrado em dois.
— Te velei a noite toda, — disse a voz do meu irmão, da porta. — Como estás?
— Melhor, muito melhor. Quando achas que poderei me levantar?
— Massacre disse que dentro de dois ou três dias, se a febre não voltar.
Por trás de Paul, apareceu de súbito Martina, trazendo um bule onde o café fumegava.
— Isto é para Hércules! O doutor disse que já podias comer!
— Deixou o bule, ajudou-me a sentar e, acomodando-me as costas com uns almofadões, me deu um beijo rápido na testa.
— Eis aqui uma insignificante prova de agradecimento. E pensar que sem voce eu seria um cadáver informe! Brrr!
Sacudi Michel.
— Querido irmão, de pé. Louis está te esperando.
— Michel se levantou, bocejou e, depois de haver-se informado da minha saúde, seguiu com Paul.
— Louis virá à tarde. E agora, Senhor Hércules, vou fazê-lo comer.
— Porque Hércules?
— Senhor! Quando alguem combate as hidras corpo a corpo…
— E eu que pensei que falava do meu físico. — disse com um tom comicamente dolorido.
— Muito bem, brinca, estarás bom muito em breve.
Me fez comer como a uma criança e depois tomamos uma xícara de café.
— É excelente. — disse.
— Muito cortês, porque eu mesma preparei. Acreditaria se te dissesse que tive que me dirigir ao Conselho para obter uma insignificante ração de café? Está classificado como medicamento! Temo que será necessários nos acostumarmos a prescindir dele.
A existência de plantas de café em Tellus é improvável. E, o que é ainda mais grave, do açúcar também.
— Ah! Com certeza encontraremos uma planta açucarada. Se não… temos colmeias.
Utilizaremos mel.
— Sim, porém embora tenhamos flores em nosso rincão de terra, a vegetação teluriana me parece, até o momento, completamente desprovida delas.