— Isso veremos depois. Por minha parte sou otimista. Tínhamos uma única possibilidade de sair com vida e aqui estamos.
Umas batidas na porta a interromperam. Eram os dois inseparáveis Ida e Enrique.
— Viemos ver o herói — disse ela.
— Oh! Herói! Quando alguem se encontra entra a espada e a parede, o heroísmo é inevitável.
— Não creio. Imagino que eu teria me deixado comer. — disse Enrique.
— E se estivesse com Ida?
— Como?
Me ruborizei.
— Não, não quis dizer isto. Suponhamos que estivesses com Martina ou outra moça.
— Francamente, não sei.
— Estás mentindo! Porém não foi para isto que te mandei chamar. Va, com os dois homens que me escoltavam, reconhecer com detalhes o depósito de ferro. E me trarás diversas amostrar. Como quando o encontramos já era tarde, não fiz mais que dar uma olhada. De qualquer forma, se o depósito valer a pena, levanta um traçado para uma via férrea. E desconfia das hidras: Elas não voam sempre em bandos! Aqui tens a prova! Duas ou três podem cair-te em cima. Leva, inclusive, dez homens de escolta e um caminhão. E tu Ida, como vai teu trabalho?
— Comecei a codificar seus decretos. É curioso estudar o direito no nascimento. Seu Conselho se arrogou com poderes ditatoriais. Espero que será provisório.
— Há alguma novidade?
— Louis está furioso com os observadores que deixaram passar tua hidra sem assinalá— la, sob pretexto de que era isolada. São os do posto 3.
— Que sem-vergonhas!
— Louis fala em fuzilar-los — Isto é excessivo. E não temos sobra de homens.
De fato, a primeira vez que saí, cinco dias depois, apoiando-me em Michel e Martina, me inteirei de que eles haviam sido simplesmente expulsos da guarda e condenados a dois anos de trabalho nas minas.
Pouco a pouco me reincorporei à vida normal.
Construímos uma via férrea até o depósito de ferro e um alto-forno rudimentar. O mineral — de óxido de ferro — era rico, porém pouco abundante, embora fosse suficiente para nossas reduzidas necessidades. Apesar dos conhecimentos de Estranges, a primeira fornada se produziu com dificuldade. A fundição de má qualidade, sem carvão suscetível de ser transformado em coque, foi refinado com aço. Para dizer a verdade, foi com o fim de medir nossas possibilidades que começamos aquela primeira fornada, já que para o futuro imediato não estávamos com falta de ferro.
Fundimos trilhos e rodas de vagão. Perto da mina, construímos guaritas de obra, para os trabalhadores, para o caso de ataque de hidras. Foram modificadas as cabines da locomotivas, com o fim de que pudessem ser fechadas hermeticamente, à vontade.
A temperatura era sempre a mesma, um doce clima de primavera quente. As «noites negras» aumentavam singularmente de duração.
No Observatório, meu tio e Menard já haviam descoberto cinco planetas exteriores, dos quais, o mais próximo aparecia com um atmosfera jaspeada de nuvens.
Através das aberturas nas nuvens podiam-se contemplar mares e continentes. O espectroscópio indicava a presença de oxigênio e vapor de água. Tinha dimensões substancialmente iguais à da Terra e possuía satélites. O desejo de estender os domínios está ancorado tão profundamente no coração humano, que nós, pobre fragmento de humanidade, ainda incerto da sua sobrevivência, nos alegramos de ter como vizinho um planeta habitável.
Perto da mina, sob a proteção da guarnição, aproximadamente um hectare de solo telúrico havia sido arroteado para experimentação. Era uma terra leve, rica em húmus formado pela decomposição das plantas acinzentadas. Imediatamente, mandei semear trigo de diferentes variedades, apesar da desaprovação dos camponeses que argumentavam que «não era a época». Michel teve que empregar toda sua eloquência para convencê-los de que em Tellus não havia épocas no sentido terrestre da palavra, e que produziria tanto agora quanto mais tarde.
Durante o trabalho de limpeza, tivemos que lutar contra as serpentes chatas, das quais havíamos encontrado um cadáver quando da nossa primeira exploração. Os camponeses as chamaram «víboras» e por este nome ficaram conhecidas, mesmo não tendo nenhum ponto de contato com as víboras terrestres Seu comprimento oscilava entre 50cm e 3m, e embora não fossem venenosas, falando com propriedade, sim eram muito perigosas. Suas poderosas mandíbulas côncavas injetavam na presa um líquido digestivo muito ativo, que causava, se o socorro não era imediato, uma espécie de gangrena, com liquefação dos tecidos o que produzia a morte ou pelo menos a perda do membro atacado. Afortunadamente, esses animais muito agressivos e ágeis eram raros. Um boi foi picado e morreu, um homem deveu sua salvação à presença de Massacre e Vandal que praticaram imediatamente a amputação do pé atacado. Foram as únicas vítimas.
Os primeiros animais que emigraram à superfície de Tellus foram as formigas.
Vandal descobriu um ninho de grandes formigas marrons de cujo nome esqueci, perto da mina de ferro. Eram apaixonadas por uma goma que exsudavam as plantas cinzentas. As colônias se multiplicaram rapidamente e nosso trigo, apenas aparecia sua cabeça verde e já as encontrávamos por toda parte. Na luta que se fez aos pequenos «insetos tellusianos», ganharam com facilidade.
Foi uma temporada aprazível, depois do nosso áspero começo. O trabalho absorvia nossos dias. Passaram-se vários meses. Tivemos nossa colheita de trigo, magnífica, no hectare arroteado em Tellus, boa nos campos terrestres. O trigo pareceu aclimatar— se muito bem. Nosso gado aumentava e ainda não havia problema de pastos. As plantas terrestres pareciam ganhar a partida contra as autóctones. Já existiam pradarias mistas, e era algo muito curioso ver nossas plantas rodearem um arbusto empoeirado com folhas de zinco.
Tive então ocasião de refletir sobre meu novo destino. Imediatamente após o cataclismo fiquei mergulhado na mais absoluta confusão, tive a impressão de ter sido exilado para sempre, separado dos meus amigos por uma distância ao lado da qual as terrestres não eram absolutamente nada. Depois o horror de haver caído em um mundo desconhecido e povoado de monstros. A urgência da ação, a guerra civil, a organização necessária, o papel de dirigente que havia sido forçado a assumir, haviam ocupado inteiramente meu ânimo. E agora, me apercebia disto com espanto: o que dominava dentro de mim era a alegria da aventura, um desejo frenético de ir olhar além do horizonte.
Explicava tudo isto a Martina, um dia em que estava indo ao Observatório. Michel e ela já não trabalhavam muito ali. Distribuíam seu tempo entre os «trabalhos sociais»
e o ensino de ciências a um pequeno pastor, Jaime Vidal, que se havia revelado de uma inteligência muito acima do normal. Por minha parte, eu lhe ensinava geologia, Vandal biologia e meu irmão a história da Terra. Depois, ele chegou a ser um grande sábio. E, como sabeis, vice-presidente da República. Porem não nos antecipemos.
— E pensar, — disse — que meu primo Bernard queria levar-me em seu projétil interplanetário e que eu recusei sempre, alegando que queria antes terminar meus estudos.
Na realidade eu tinha medo! Eu, que teria ido até o final do mundo para procurar um fóssil, experimentava um verdadeiro horror ante a ideia de sair da Terra. E eis-me aqui em Tellus, tão contente. É curioso.
— Quanto a mim é ainda mais curioso. Já estava tentando refutar, em minha tese, a teoria do espaço curvo. E foi aqui que sofri uma prova esmagadora da sua veracidade.
Estávamos na metade do caminho, quando soou a sirene.
— Cuidado! Ainda esses animais imundos. Ao refugio!
Havíamos construído refúgios, um pouco por toda parte. Nesta ocasião eu tinha, além da minha pistola e da minha faca, uma metralhadora. O refúgio mais próximo estava a uns trinta metros. Corremos até lá sem falsa vergonha. Obriguei Martina a entrar, permanecendo eu junto à porta, disposto a atirar. Rolaram umas pedras e uma silhueta curva, vestida de negro, apareceu: o Senhor cura.