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Mas, ainda assim, havia sempre aquela estranheza quando Thar lhe dizia «Disseste-me antes de morrer…»

Certa vez, perguntou:

— Quem eram aqueles homens que quiseram vir roubar os Túmulos? Alguma vez algum o conseguiu?

A idéia de haver ladrões afigurara-se-lhe emocionante mas improvável. Como poderiam chegar secretamente ao Lugar? Os peregrinos eram muito poucos, menos ainda que os prisioneiros. De vez em quando, novas noviças ou escravos eram enviados de templos menos importantes dos Quatro Territórios ou aparecia um pequeno grupo a trazer alguma oferta de ouro ou incenso raro a um dos templos. E era tudo. Ninguém ali ia por acaso, nem para vender e comprar, nem para ver o panorama, nem para roubar. Ninguém ali ia, a não ser que tivesse ordens para o fazer. Arha nem sequer sabia qual fosse a distância até à vila mais próxima, vinte milhas ou mais, e a vila mais próxima era bem pequena. O Lugar estava defendido pelo vazio e pela solidão. Quem quer que atravessasse o deserto que o rodeava, pensou ela, teria tanta possibilidade de passar despercebido como uma ovelha negra num campo de neve.

Estava com Thar e Kossil, com quem muito do seu tempo era agora passado quando não se encontrava na Casa Pequena ou sozinha, sob a colina. Era uma noite de Abril, tempestuosa e fria. Estavam sentadas junto a um pequeno fogo de salva, à lareira da divisão que ficava por trás do templo do Rei-Deus, o quarto de Kossil. Do lado de fora da porta, no átrio, Manane e Duby disputavam um jogo com pauzinhos e fichas, atirando ao ar um feixe de pauzinhos e apanhando a maior quantidade possível nas costas da mão. Secretamente, no pátio interior da Casa Pequena, Manane e Arha ainda o jogavam às vezes. O ruído de pauzinhos a cair, as roucas interjeições de triunfo ou derrota, o ligeiro estalar do fogo, eram os únicos sons que se ouviam quando entre as três sacerdotisas se fazia silêncio. Ao seu redor, para além das paredes, estendia-se o profundo silêncio do deserto noturno. De vez em quando, chegava até elas o tamborilar de esparsas mas fortes bátegas de água.

— Muitos vieram para roubar os Túmulos, há muito tempo. Mas nunca nenhum o conseguiu — afirmou Thar.

Taciturna como era, gostava no entanto de, uma vez por outra, contar uma história, e freqüentemente o fazia como parte da educação de Arha. Pelo seu aspecto, aquela devia ser uma noite em que seria possível arrancar-lhe uma história.

— Como podia algum homem atrever-se?

— Eles atreveram-se — esbravejou Kossil. — Eram bruxos, gente de magia das Terras Interiores. Isso foi antes de os Reis-Deuses governarem as Terras de Kargad. Nesse tempo não éramos tão fortes como hoje. Os feiticeiros costumavam vir navegando de ocidente até Karego-At e Atuan, para saquear as povoações costeiras, pilhar as quintas e chegando mesmo a entrar na Cidade Sagrada de Áuabath. Vinham para matar dragões, diziam, mas ficavam para roubar vilas e templos.

— E os seus grandes heróis vinham até ao meio de nós para experimentar as suas espadas — interpôs Thar — e lançar os seus ímpios feitiços. Um deles, um grande feiticeiro e senhor de dragões, o maior entre todos eles, veio aqui encontrar a derrota. Foi há muito, muito tempo, mas a história é ainda recordada e não apenas aqui. O mágico chamava-se Erreth-Akbe e, no Ocidente, era não só feiticeiro como também rei. Veio até às nossas terras e, em Áuabath, reuniu-se com certos senhores rebeldes karguianos e lutou pelo domínio da cidade contra o Grão-Sacerdote do Templo Interior dos Irmãos-Deuses. Por longo tempo combateram, a magia do homem contra o faiscar dos deuses, e o templo foi-se destruindo ao redor deles. Por fim, o Grão-Sacerdote quebrou a vara dos bruxedos do mágico, partiu em dois o seu amuleto do poder e derrotou-o. O feiticeiro escapou da cidade e das terras de Kargad e fugiu através de toda Terramar até o mais longe possível para ocidente. Mas aí um dragão tirou-lhe a vida, porque ele perdera o seu poder. E desde esse dia o poder e a autoridade das Terras Interiores não mais cessou de diminuir. Ora o Grão-Sacerdote chamava-se Intáthin e foi o primeiro da casa de Tarb, essa linhagem de que, após o cumprimento das profecias e a passagem dos séculos, descenderam os Sacerdotes-Reis de Karego-At e, deles, os Reis-Deuses de toda Kargad. E assim foi que, desde os dias de Intáthin, o poder e o domínio dos territórios karguianos não mais cessaram de aumentar. Aqueles que vieram para roubar os Túmulos eram bruxos, sempre tentando recuperar o amuleto quebrado de Erreth-Akbe. Mas continua aqui, onde o Grão-Sacerdote o colocou para que fosse guardado. E também os seus ossos…

E Thar apontou para o chão a seus pés.

— Metade está aqui — acrescentou Kossil.

— E a outra metade perdida para sempre.

— Perdida como? — perguntou Arha.

— Uma metade, que ficou na mão de Intáthin, foi por ele dada ao Tesouro dos Túmulos, onde ficaria em segurança para sempre. A outra ficou na mão do bruxo mas ele entregou-a, antes de fugir, a um rei insignificante, um dos seus rebeldes, chamado Thoreg de Hupun. Não sei porque o terá feito.

— Para causar conflito, para envaidecer Thoreg — adiantou Kossil. — E conseguiu-o. Os descendentes de Thoreg voltaram a rebelar-se quando a casa de Tarb alcançou o poder. E uma vez mais pegou em armas contra o primeiro Rei-Deus, recusando reconhecê-lo como rei ou como deus. Eram uma raça maldita, enfeitiçada. Agora já todos morreram.

Thar assentiu com um aceno de cabeça e prosseguiu:

— O pai do nosso atual Rei-Deus, o Senhor Que Se Ergueu, dominou essa família de Hupun e destruiu-lhes os palácios. Feito isto, o meio amuleto, que eles tinham sempre conservado desde os tempos de Erreth-Akbe e de Intáthin, perdeu-se. Ninguém sabe o que lhe terá acontecido. E desde então já passou o tempo de uma vida.

— Certamente terá sido deitado fora como lixo — sugeriu Kossil. — Dizem que não se assemelha a nada de valor, esse Anel de Erreth-Akbe. Maldito seja ele e malditas todas as coisas da gente da magia!

E Kossil cuspiu no fogo.

— Alguma vez viste a metade que está aqui? — perguntou Arha, voltando-se para Thar.

A mulher magra sacudiu a cabeça negativamente.

— Está nessa sala do tesouro onde ninguém pode penetrar, a não ser a Grã-Sacerdotisa. É talvez o maior de todos os tesouros que ali se encontram, não sei. Mas penso que talvez seja. Durante centenas de anos, as Terras Interiores têm enviado até aqui ladrões e feiticeiros a tentar recuperá-lo. E eles passam por cofres abertos, cheios de ouro, sem parar porque procuram apenas essa única coisa. Muito tempo passou desde que Erreth-Akbe e Intáthin viveram e mesmo assim a história continua a ser contada e voltada a contar, tanto aqui como no Ocidente. Muitas são as coisas que envelhecem e se vão, com o passar dos séculos. Muito poucas são as coisas preciosas que permanecem preciosas, ou as histórias que continuam a ser contadas.

Depois de permanecer silenciosa e pensativa durante algum tempo, Arha observou:

— Devem ter sido homens muito corajosos, ou muito estúpidos, para entrarem nos Túmulos. Não conheciam eles os poderes d’Aqueles-que-não-têm-Nome?

— Não! — retorquiu Kossil na sua voz fria. — Eles não têm deuses. Fazem magia e julgam-se eles próprios deuses. Mas não o são. E quando morrem, não voltam a nascer. Tornam-se pó e ossos e, durante algum tempo, os seus fantasmas gemem no vento, até que o vento os dispersa. Não têm almas imortais.

— Mas que magia é essa que eles fazem? — perguntou Arha, cativada. Nem sequer se lembrou de ter dito uma vez que teria virado costas e recusado olhar os navios das Terras Interiores. — Como é que fazem isso? E o que é que isso faz?