— Truques, ilusões, prestidigitação — foi a resposta de Kossil.
— Algo mais que isso — interpôs Thar —, se é que há ao menos uma parte de verdade nas histórias. Os feiticeiros do Ocidente podem levantar e acalmar os ventos, e fazê-los soprar para onde querem. Nesse ponto, todos concordam e contam a mesma história. É por isso que são grandes navegantes. Podem pôr o vento de magia nas suas velas, indo para onde desejam, e aquietar as tempestades no mar. E diz-se que podem fazer luz a seu bel-prazer, e escuridão também. E transformar pedras em diamantes, chumbo em ouro. E que podem construir um grande palácio ou uma cidade inteira num instante, pelo menos em aparência. E que se podem transformar em ursos, ou peixes, ou dragões, conforme lhes agradar.
— Não acredito em nada disso — contrapôs Kossil. — Que são perigosos, sutis nos seus truques, escorregadios como enguias, isso sim. Mas dizem que se tirarmos o bordão de madeira a um feiticeiro, ele fica sem poder algum. Provavelmente têm runas malfazejas escritas no bordão.
Mas Thar voltou a discordar com uma sacudidela de cabeça.
— Sim, é verdade que trazem um bordão, mas é apenas um instrumento para o poder que têm dentro de si.
— Mas como alcançam o poder? — perguntou Arha. — De onde vem ele?
— Mentiras — disse Kossil.
— Palavras — emendou Thar. — Foi o que certa vez me foi dito por alguém que tinha visto um grande bruxo das Terras Interiores, um Mago, como são chamados. Tinham-no feito prisioneiro, durante uma incursão para ocidente. Ele mostrou-lhes um pau seco e sobre ele pronunciou uma palavra. E eis senão quando, floriu. E disse outra palavra e deu maçãs vermelhas. E disse ainda mais uma palavra e pau, flores, maçãs, tudo desapareceu e o feiticeiro também. Com uma só palavra ele fora-se como se vai um arco-íris, num abrir e fechar de olhos, sem deixar rasto. E nunca mais o conseguiram encontrar naquela ilha. Seria isto apenas prestidigitação?
— É fácil fazer tolos dos tolos — comentou Kossil.
Thar nada mais disse, para evitar a discussão, mas Arha não queria de maneira alguma abandonar o assunto.
— Como é que são realmente essas gentes da magia? — perguntou. — São realmente todos pretos e com os olhos brancos?
— São pretos e abjetos. Nunca vi nenhum — respondeu Kossil com satisfação, deslocando o seu pesado e volumoso corpo sobre o banco baixo e estendendo as mãos para o fogo.
— Possam os Irmãos-Deuses mantê-los longe de nós — resmungou Thar.
— Nunca mais aqui voltarão — afirmou Kossil.
E o fogo crepitou, a chuva rufou no telhado e, do lado de lá da entrada sombria, soou a voz aguda de Manane, gritando:
— Ahá! Uma metade para mim, uma metade!
5. LUZ SOB A COLINA
Ia o ano de novo rodando, a aproximar-se do Inverno, quando Thar morreu. No Verão, viera sobre ela uma doença consumidora e ela, que fora magra, ficou esquelética, ela, que fora sisuda, deixou completamente de falar. Só a Arha dirigia por vezes a palavra, quando estavam apenas as duas. Mas depois até isso acabou e foi em silêncio que penetrou na escuridão. Depois de ela se ter ido, Arha sentiu-lhe dolorosamente a falta. Apesar da sua severidade, nunca fora cruel. Fora orgulho que ensinara a Arha e não temor.
Agora, havia apenas Kossil.
Na Primavera, viria de Áuabath uma nova Grã-Sacerdotisa para o Templo dos Irmãos-Deuses. Até lá, Arha e Kossil dividiam entre si o governo do Lugar. A mulher tratava a rapariga por «senhora» e devia obedecer a qualquer ordem dada por esta. Mas Arha em breve aprendeu a não dar ordens a Kossil. Tinha o direito de o fazer, mas não a energia, pois bem grande devia tal energia ser para enfrentar a inveja de Kossil por uma posição superior à sua, o ódio por toda e qualquer coisa que ela própria não pudesse controlar.
A partir da altura em que Arha aprendera (com a doce Penthé) que a ausência de fé existia, e o aceitara como uma realidade embora a assustasse, fora capaz de encarar Kossil muito mais friamente e de a entender. No seu coração, Kossil não tinha verdadeiro respeito por Aqueles-que-não-têm-Nome nem pelos deuses. Para ela, de sagrado só havia o poder. O Imperador das Terras de Kargad detinha agora o poder e, portanto, a seus olhos, ele era realmente um rei-deus e servi-lo-ia bem. Mas para ela os templos não passavam de aparência, as Pedras Tumulares eram rochas e os Túmulos de Atuan buracos negros no solo, terríveis mas vazios. Se pudesse, poria fim ao culto do Trono Vazio. Se se atrevesse, poria fim à Grã-Sacerdotisa.
Arha conseguira encarar mesmo este último fato com bastante firmeza. Talvez Thar a tivesse ajudado a ver as coisas tal como eram, embora sem nunca dizer nada abertamente. Nas primeiras fases da sua doença, antes que o silêncio se apoderasse dela, pedira a Arha que a viesse ver de poucos em poucos dias e falara com ela, contando-lhe muitas coisas acerca das ações do Rei-Deus e do seu predecessor e de como eram as coisas em Áuabath — assuntos que, sendo uma sacerdotisa importante, devia conhecer, mas que freqüentemente não eram lisonjeiros para o Rei-Deus nem para a sua corte. E falara também da sua própria vida e descrevera o aspecto da Arha da vida anterior e o que ela fizera. Por vezes, pouco freqüentemente, mencionara também quais poderiam ser os perigos e dificuldades na vida presente de Arha. Nem uma vez pronunciou o nome de Kossil. Mas Arha fora discípula de Thar durante onze anos, pelo que lhe bastava uma meia palavra ou uma entoação para perceber. E para recordar.
Depois de ultrapassada a sombria agitação dos Ritos do Luto, Arha deu em evitar Kossil. Logo que cumpridos os rituais e as longas tarefas do dia, dirigia-se para a sua morada solitária. E, sempre que tinha tempo, ia até à câmara por detrás do Trono, abria o alçapão e descia para o seio da escuridão. Fosse de dia ou de noite, porque isso ali não fazia qualquer diferença, prosseguia na sistemática exploração do seu domínio. O Subtúmulo, com a sua grande carga sagrada, era vedado em absoluto a qualquer ser que não fosse uma sacerdotisa e os seus eunucos de maior confiança. Qualquer outra pessoa, homem ou mulher, que se aventurasse a descer ali seria indubitavelmente ferido de morte pela ira d’Aqueles-que-não-têm-Nome. Mas entre todas as regras que aprendera, nenhuma havia que proibisse a entrada no Labirinto. Não era necessário. Ali só se podia chegar através do Subtúmulo. E, de qualquer modo, será que as moscas precisam de regras para não entrarem numa teia de aranha?
Assim, levou Manane muitas vezes até às zonas periféricas do Labirinto, para que ele aprendesse os caminhos. O eunuco não tinha a menor vontade de ali entrar mas, como sempre, obedecia-lhe. Assegurou pessoalmente que Duby e Uahto, eunucos de Kossil, aprendessem o caminho até à Sala das Correntes e de saída do Subtúmulo, mas não mais que isso. Nunca os levou para dentro do Labirinto. Não queria que mais ninguém, para além de Manane, que lhe era fiel em absoluto, conhecesse os caminhos secretos. Porque eram dela, só dela, para sempre. Começara a exploração total do Labirinto. Durante todo o Outono, passou muitos dias a caminhar pelos infindáveis corredores e, mesmo assim, ainda havia zonas deles onde nunca chegara. Havia um cansaço inerente àquele traçar da vasta e insensata teia de caminhos. As pernas cansavam-se, a mente entediava-se, naquele incessante verificar de voltas e passagens que ficavam para trás ou ainda estavam para vir. Era maravilhoso, estabelecido na rocha sólida do subsolo como as ruas de uma grande cidade. Mas fora concebido para cansar e confundir os mortais que por ele caminhassem e mesmo as suas sacerdotisas tinham de acabar por sentir que nada mais era que uma gigantesca armadilha.
E assim, cada vez mais à medida que o Inverno avançava, Arha foi deixando a sua grande exploração, trocando-a pela da própria Morada, pelos altares, as alcovas atrás e debaixo dos altares, as câmaras cheias de arcas e caixas, o conteúdo dessas arcas e caixas, as passagens e os sótãos, o vazio poeirento sob a cúpula onde faziam ninho centenas de morcegos, as caves e subcaves que eram as antecâmaras dos corredores da escuridão.