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As mãos e as mangas perfumadas com a seca doçura de almíscar que se tornara em pó nas oito centenas de anos em que ficara numa arca, a fronte marcada pelo negro pegajoso de uma teia de aranha, chegava a ficar uma hora ajoelhada a estudar as figuras gravadas num belo cofre de cedro que o tempo degradara, oferta de algum rei, eras antes, aos Poderes Inominados dos Túmulos. E ali estava o rei, uma minúscula figura rígida com um grande nariz, ali estava a Sala do Trono com a sua abóbada achatada e as suas colunas no pórtico, tudo gravado em delicado relevo por algum artista que havia muitos séculos era apenas pó. Ali estava a Grã-Sacerdotisa, aspirando os fumos estupefacientes dos tabuleiros de bronze e profetizando ou aconselhando o rei, cujo nariz nesta cena estava partido. O rosto da Sacerdotisa era demasiado diminuto para se verem claramente as feições mas Arha imaginava que esse rosto fosse o seu. E ficava a pensar o que teria dito ao rei e se ele lhe ficara grato.

Arha tinha sítios favoritos na Mansão do Trono, tal como qualquer pessoa poderia ter lugares favoritos numa casa clara e bem iluminada pelo sol. Ia muitas vezes até umas pequenas águas-furtadas acima de um dos quartos de vestir nas traseiras da Mansão. Ali se guardavam antigos vestidos e outros trajes, vindos dos tempos em que grandes reis e senhores vinham prestar o seu culto no Lugar dos Túmulos de Atuan, assim reconhecendo um poder maior que o seu ou de qualquer homem. Por vezes as suas filhas, as princesas, tinham envergado estas macias sedas brancas, recamadas de topázios e escuras ametistas, e dançado com as Sacerdotisas dos Túmulos. Havia pequenas mesas de marfim, pintadas, numa das salas de tesouro, representando uma dessas danças, com os senhores e os reis à espera fora da Mansão, porque, então como agora, homem algum pisava jamais o solo dos Túmulos. Mas as donzelas podiam entrar e dançar com as Sacerdotisas, vestidas de seda branca. A Sacerdotisa, essa, vestia-se com tecido grosseiro, de fabrico caseiro, sempre negro, então como agora. Mas Arha gostava de vir passar os dedos pelo pano suave, apodrecido com os anos, pelas imperecíveis pedras preciosas que, pelo seu próprio peso, se iam desprendendo do tecido. Havia um aroma naquelas arcas diferente de todas as essências e incensos dos templos do Lugar. Um aroma mais fresco, mais sutil, mais jovem.

Nas salas de tesouro era capaz de passar toda uma noite a estudar o conteúdo de uma única arca, jóia por jóia, as armaduras enferrujadas, as plumas quebradas dos elmos, as fivelas e alfinetes e broches, de bronze, de prata, de ouro maciço.

Mochos, indiferentes à sua presença, permaneciam pousados nas vigas, abrindo e fechando os olhos amarelos. Por entre as telhas escoava-se um pouco de luz das estrelas. Ou então era a neve que vinha caindo como de um crivo, fina e fria como aquelas antigas sedas que se faziam em nada ao toque das mãos.

Em certa noite, ia o Inverno já bem avançado, Arha sentiu que estava demasiado frio na Mansão. Foi até ao alçapão, ergueu-o, rodou o corpo para alcançar os degraus e fechou o alçapão sobre si. Começou a percorrer silenciosamente o caminho que tão bem conhecia agora, a passagem para o Subtúmulo. Ali, é claro, nunca levava luz. Se trazia uma lanterna, de ter ido ao Labirinto ou entrado de noite pelo campo aberto, apagava-a antes de chegar próximo do Subtúmulo. Ela nunca vira esse lugar, nunca em todas as gerações do seu sacerdócio. Entrando na passagem, soprou a vela da lanterna que trazia e, sem abrandar o andamento, seguiu em frente naquele negrume de breu, tão facilmente como um peixinho em águas turvas. Aqui, fosse Inverno ou Verão, não havia frio nem calor. Era sempre o mesmo fresco, um pouco úmido, imutável. Lá por cima, os fortes e gélidos ventos do Inverno varriam uma neve fina por sobre o deserto. Mas ali não havia vento, não havia estação. Era fechado, calmo, seguro.

Arha encaminhava-se para a Sala Pintada. Gostava por vezes de ali ir e estudar os estranhos desenhos que o bruxulear da sua lanterna arrancava à escuridão. Eram homens com longas asas e grandes olhos, serenos e taciturnos. Ninguém lhe podia dizer de quem se tratava, pois não havia mais pinturas assim em lado algum do Lugar, mas ela julgava saber o que eram. Os espíritos dos condenados, que não voltam a nascer. A Sala Pintada ficava no Labirinto, de modo que ela tinha de passar primeiro pela caverna sob as Pedras Tumulares. Ao aproximar-se, descendo a passagem inclinada, um vago cinzento como que desabrochou, não mais que uma leve sugestão de brilho, eco do eco de uma luz distante.

Julgou que os olhos lhe estivessem a pregar uma partida, como tantas vezes acontecia naquele negrume absoluto. Fechou-os, pois, e o brilho desapareceu. Abriu-os e o brilho voltou.

Deixara de caminhar e ficara imóvel. Cinzento, não negro. Um fio pálido e mortiço, apenas visível, onde nada podia ser visível, onde tudo devia ser negro.

Deu uns poucos passos em frente e estendeu a mão para aquele ângulo da parede do túnel. E, infinitamente indistinto, viu o movimento da sua mão.

Continuou em frente. Aquilo era estranho para lá do pensamento, para lá do temor, aquele ínfimo desabrochar de luz onde luz alguma jamais existira, no mais profundo sepulcro da escuridão. Prosseguiu sem fazer ruído, os pés nus, vestida de negro. Antes da última volta do corredor deteve-se. Depois, muito lentamente, deu o último passo, olhou, viu.

Viu o que nunca vira, embora tivesse vivido uma centena de vidas. A grande caverna abandonada sob as Pedras Tumulares, que não fora escavada por mãos humanas mas pelos poderes da Terra. Surgia enriquecida de cristais, ornamentada com pináculos e filigranas de calcário branco onde as águas subterrâneas tinham agido, desde há eras. Imensa, com teto e paredes resplandecendo, cintilante, delicada e intrincada, um palácio de diamantes, uma casa de ametista e cristal, de onde a antiqüíssima escuridão fora arrancada por inaudita magnificência.

Não que fosse muito brilhante a luz que obrara aquela maravilha, mas mesmo assim ofuscante para um olhar habituado ao escuro. Era um clarão suave, como um fogo-fátuo, que se movia lentamente através da caverna, arrancando milhares de reflexos cintilantes do teto ornado de gemas e fazendo ondular milhares de sombras fantásticas ao longo da paredes esculpidas.

A luz ardia na ponta de um bordão de madeira, sem fumo, sem o consumir. O bordão era seguro por mão humana. Arha viu o rosto ao lado da luz. Um rosto escuro. O rosto de um homem.

Não se moveu.

Durante muito tempo, o homem atravessou e voltou a atravessar a vasta caverna. Movia-se como se procurasse alguma coisa, espreitando para trás das arrendadas cataratas de pedra, estudando os vários corredores que se abriam para fora do Subtúmulo mas sem neles penetrar. E ainda imóvel permanecia a Sacerdotisa dos Túmulos, no ângulo negro da passagem, esperando.

O que lhe era talvez mais difícil de conceber era que estava a olhar um estranho. Muito raramente vira um estranho. Parecia-lhe que aquele teria de ser um dos vigilantes — não, um dos homens de fora da parede, um cabreiro ou um guarda, um escravo do Lugar. E que ele viera para ver os segredos d’Aqueles-que-não-têm-Nome, talvez para roubar qualquer coisa dos Túmulos…

Para tirar alguma coisa. Para roubar os Poderes da Treva. Sacrilégio. Foi lentamente que a palavra veio à idéia de Arha. Aquele era um homem e homem algum podia jamais pisar o solo dos Túmulos, o Lugar Sagrado. E no entanto chegara até ali, ao espaço oco que era o coração dos Túmulos. Entrara nele. Fizera luz onde a luz era proibida, onde nunca existira desde o princípio do mundo. Porque não o teriam Aqueles-que-não-têm-Nome ferido de morte?

O homem estava agora a mirar o chão pétreo, que se encontrava fendido e revolvido. Via-se que tinha sido aberto e voltado a fechar. Os informes e estéreis pedaços de solo, cavados para fazer as sepulturas, não tinham sido devidamente nivelados depois.