Os Senhores de Arha tinham devorado aqueles três. Porque não faziam o mesmo a este? De que estariam à espera?
Que as mãos dela agissem, que a língua dela falasse, pois essas eram as mãos e a língua d’Aqueles-que-não-têm-Nome.
— Vai-te! Vai-te! Desaparece! — bradou ela de imediato a plenos pulmões. Grandes ecos estridentes reboaram ao longo da caverna, como que enevoando o rosto escuro, sobressaltado, que se voltou para ela e, por um momento, através do esplendor subitamente abalado da caverna, a viu. Depois a luz desapareceu. Todo o esplendor se foi. Escuridão total. E silêncio.
Arha podia agora voltar a pensar, liberta como estava do feitiço da luz.
O estranho devia ter entrado pela porta de rocha vermelha, a Porta dos Prisioneiros, portanto tentaria fugir por aí. Tão ligeira e silenciosa como os mochos de asas suaves, ela percorreu a meia periferia da caverna até ao túnel baixo que conduzia àquela porta que só abria para dentro. Inclinou-se para a frente à entrada do túnel. Não havia qualquer corrente de ar vinda do exterior. O estranho não deixara a porta aberta atrás de si. Estava fechada e, se ele se encontrasse no túnel, ficara preso na armadilha.
Mas o estranho não estava no túnel. Arha tinha a certeza. Tão próximo, naquele lugar limitado, ela ter-lhe-ia ouvido o respirar, sentido o calor e o pulsar da sua própria vida. Não havia ninguém dentro do túnel. Endireitou-se e escutou. Para onde teria ele ido?
A escuridão era como uma venda a apertar-lhe os olhos. Ter visto o Subtúmulo confundira-a. Estava desorientada. Conhecera-o apenas como uma região definida pelo ouvido, pelo tatear tias mãos, pelo perpassar de ar frio no escuro. Uma vastidão. Um mistério destinado a nunca ser visto. Mas ela vira-o e o mistério dera lugar, não ao horror, mas à beleza, um mistério mais profundo ainda que o da treva.
Seguiu então em frente, insegura. Apalpou o caminho para a esquerda, até à segunda passagem, a que conduzia ao Labirinto. Aí parou e escutou.
Os ouvidos não lhe disseram mais que os olhos. Contudo, enquanto permanecia com uma mão apoiada de cada lado da arcada de pedra, sentiu uma ligeira, uma obscura vibração na rocha e no ar frio e sediço havia o vestígio de um aroma que não pertencia ali, o cheiro da salva brava que crescia nas colinas do deserto, por cima dela, a céu aberto.
Lenta e silenciosamente, avançou pelo corredor, seguindo o que o olfato lhe dizia.
Após talvez uns cem passos, ouviu-o. Era quase tão silencioso como ela, mas não tão seguro de pés no escuro. Arha ouviu um ligeiro arrastar, como se ele tivesse tropeçado no piso desigual, recuperando de imediato o equilíbrio. Nada mais que isso. Ela esperou um pouco e depois prosseguiu devagar, com as pontas dos dedos da mão direita a tocarem muito ligeiramente a parede. Por fim, sentiu debaixo deles uma barra roliça de metal. Aí parou e foi percorrendo com a mão a tira de ferro, quase tão alto quanto podia alcançar, até tocar num punho saliente de ferro grosseiro. De súbito, com toda a sua força, puxou para baixo esse punho.
Houve um ruído terrível de metal raspando em metal e um estrondo. Chispas azuis saltaram e caíram em chuveiro. Os ecos foram morrendo pelo corredor abaixo, atrás dela. Estendeu as mãos e sentiu, poucos centímetros apenas em frente do seu rosto, a superfície irregular de uma porta de ferro.
Inspirou profundamente.
Regressando com passos lentos ao Subtúmulo e mantendo a parede deste para a sua direita, dirigiu-se ao alçapão, na Mansão do Trono. Não se apressou e caminhou silenciosamente, embora já não houvesse necessidade de silêncio. Arha apanhara o seu ladrão. A porta que ele atravessara era o único caminho para entrar ou sair do Labirinto. E só podia ser aberta do lado de fora.
O estranho estava agora ali em baixo, no negrume do subsolo, e nunca de lá voltaria a sair.
Caminhando lenta e ereta, Arha passou pelo trono e penetrou no longo átrio das colunas. Aí, onde uma bacia de bronze sobre uma alta trípode difundia o clarão vermelho de carvões incandescentes, voltou-se e aproximou-se dos sete degraus que conduziam ao Trono.
Ajoelhando-se no degrau mais baixo, inclinou a fronte até tocar a pedra fria e poeirenta, juncada de ossos de rato que os mochos ali deixavam cair.
— Perdoai-me por ter visto o Vosso negrume devassado — disse, mas sem pronunciar as palavras em voz alta. — Perdoai-me por ter visto os Vossos túmulos violados. Sereis vingados. O meus Senhores, a morte o entregará a Vós e ele nunca renascerá!
E contudo, mesmo durante a prece, com os olhos da sua mente, ela via ainda o tremeluzente esplendor da caverna iluminada, a vida no lugar da morte. E em vez do terror perante o sacrilégio e de raiva contra o ladrão, pensava apenas em como era estranho, tão estranho…
— Que hei de eu dizer a Kossil? — perguntou a si própria ao sair para as rajadas do vento invernoso e aconchegando o manto ao corpo. — Nada. Ainda não. Eu é que sou a senhora do Labirinto. Este não é um assunto para o Rei-Deus. Dir-lhe-ei depois de o ladrão ter morrido, talvez. E como deverei matá-lo? Devia obrigar a Kossil a vir vê-lo morrer. É tão amiga da morte. De que andaria ele à procura? Deve ser louco. E como terá entrado? A Kossil e eu temos as únicas chaves da porta da rocha vermelha e do alçapão. Deve ter entrado pela porta da rocha vermelha. Só um bruxo a podia abrir. Um bruxo…
Apesar do vento que quase a fazia cair, estacou.
— Ele é um bruxo, um feiticeiro das Terras Interiores, em busca do amuleto de Erreth-Akbe.
E havia naquilo um tão revoltante fascínio que ela sentiu um súbito calor invadi-la, mesmo no meio daquele vento gélido, e riu alto. Em todo o seu redor o Lugar e o deserto que o envolvia estavam negros e silenciosos. O vento gemia. Lá em baixo, na Casa Grande, não se via uma luz. Uma neve fina, quase invisível, perpassava no vento.
— Se ele abriu a porta da rocha vermelha com bruxedos, pode abrir outras. Pode fugir.
Este pensamento deixou-a momentaneamente gelada, mas não a convenceu. Aqueles-que-não-têm-Nome tinham-no deixado entrar. E porque não? Ele não podia fazer mal algum. Que mal faz um ladrão que não pode abandonar a cena do seu roubo? Feitiços e negros poderes devia ele ter, e poderosos sem dúvida, já que chegara tão longe. Mas mais longe não iria. Nenhum feitiço lançado por homem mortal podia ser mais forte que a vontade d’Aqueles-que-não-têm-Nome, as presenças nos Túmulos, os Reis cujo Trono estava vazio.
Para se assegurar do que pensava, apressou os passos em direção à Casa Pequena. Manane estava adormecido no alpendre da entrada, embrulhado na sua capa e no coçado cobertor de pele que lhe servia de cama no Inverno. Arha entrou sem barulho, de modo a não o acordar, e sem acender qualquer lâmpada. Abriu uma pequena divisão fechada à chave, pouco mais que um armário ao fundo da entrada. Fez saltar uma chispa de pederneira, apenas o suficiente para encontrar um certo ponto no chão e, ajoelhando-se, levantou um ladrilho. Um pedaço de tecido pesado e sujo, de poucos centímetros quadrados, revelou-se-lhe ao toque. Sem ruído, desviou-o para um lado e logo saltou para trás, porque um raio de luz saíra lá de baixo, direito ao seu rosto.
Após um momento, com muito cuidado, espreitou pela abertura. Tinha esquecido que o estranho trazia aquela estranha luz no seu bordão. O máximo que ela tinha esperado fora ouvi-lo, lá em baixo, na escuridão. Esquecera a luz, mas ele estava onde ela esperara que estivesse. Precisamente por baixo do orifício de observação, junto à porta de ferro que lhe bloqueava a fuga do Labirinto.
Estava ali de pé, uma das mãos na anca, a outra segurando o bordão, tão alto como ele próprio e de cuja extremidade pendia o suave fogo-fátuo, um pouco para o lado. Tinha a cabeça, que ela olhava de pouco mais de um metro acima dele, virada para cima e ligeiramente de lado. As suas roupas eram as que qualquer viajante ou peregrino usaria no Inverno, um capote curto e pesado, uma túnica de couro, polainas de lã, sandálias com cordões. Trazia às costas uma pequena mochila de onde pendia um cantil de água e à cinta uma faca na sua bainha. E ali estava, quieto como uma estátua, tranqüilo e pensativo.