Lentamente, ergueu o bordão do solo e dirigiu a extremidade luminosa para o lado da porta, que Arha não conseguia avistar do seu ponto de observação. A luz mudou, tornando-se mais pequena e mais brilhante, um intenso fulgor. O homem falou em voz alta. A língua em que falava era estranha para Arha, mas mais estranha ainda que as palavras era a voz, profunda e ressoante.
A luz do bordão avivou-se, piscou, abrandou. Por um momento desapareceu mesmo de todo e ela deixou de o ver.
A luz de um pálido violeta do fogo-fátuo reapareceu, estável agora, e ela viu o estranho desviar-se da porta. O seu feitiço de abrir tinha falhado. Os poderes que mantinham cerrada a fechadura daquela porta eram mais fortes que qualquer magia que ele pudesse possuir.
O estranho olhou em volta, como se pensasse «E agora?».
O túnel ou corredor onde ele se encontrava tinha cerca de metro e meio de largura e o teto ficava quatro a quatro metros e meio acima do grosseiro chão de pedra. Ali as paredes eram de pedra aparelhada, colocada sem recurso a qualquer argamassa mas com imenso cuidado e com junções tais que dificilmente se conseguiria introduzir nas fendas a ponta de uma faca. Iam-se inclinando para dentro cada vez mais até formarem uma abóbada.
Nada mais havia.
O estranho avançou pelo corredor. A primeira passada ficou fora do raio de visão de Arha. A luz perdeu-se na distância. A rapariga estava prestes a voltar a colocar o pano e o ladrilho quando uma vez mais o suave raio de luz se ergueu do chão à sua frente. Ele voltara para junto da porta. Teria talvez concluído que, uma vez que se afastasse dela e penetrasse na rede de passagens, poucas probabilidades teria de a voltar a encontrar.
O estranho falou, uma única palavra dita em voz baixa. «Emenn», disse e logo de novo, mais alto, «Emenn!» E a porta de ferro estralou nas ombreiras, surdos ecos reboaram ao longo do túnel abobadado como trovões, e Arha julgou sentir o chão estremecer debaixo dela.
Mas a porta permaneceu fechada.
Ele riu então, uma gargalhada curta, a de um homem que pensa «Que grande disparate que eu fui fazer!» Olhou uma vez mais em volta, para as paredes, e quando ergueu o olhar Arha viu que o sorriso permanecia no seu rosto escuro. Depois sentou-se, tirou a mochila das costas, pescou de lá de dentro um pedaço de pão seco e pôs-se a mastigá-lo. Tirou a rolha à vasilha de couro da água e sacudiu-a. Parecia leve na sua mão, como se estivesse quase vazia. Voltou a rolhá-la sem ter bebido. Pôs a mochila atrás de si a servir de almofada, embrulhou-se bem no capote e deitou-se. Na mão direita continuava a segurar o bordão. Ao mesmo tempo que se recostava, a pequena esfera de fogo-fátuo libertou-se e ficou suspensa, flutuando no ar por trás da sua cabeça, alguns palmos acima do solo. O estranho tinha a mão esquerda sobre o peito, segurando qualquer coisa que pendia de uma pesada corrente que ele trazia ao pescoço. Ficou ali deitado muito confortavelmente, de pernas cruzadas pelos tornozelos. O seu olhar perpassou pelo orifício de observação e desviou-se. Suspirou e fechou os olhos. A luz foi diminuindo muito lentamente. Adormeceu.
A mão fechada em punho sobre o peito descontraiu-se e deslizou para o lado, de modo que a observadora lá em cima pôde então ver que talismã trazia ele pendurado da sua corrente. Era um pedaço de metal sem polimento, ao que parecia em forma de crescente.
O débil brilho da sua bruxaria foi-se desvanecendo, deixando-o no silêncio e no escuro.
Arha voltou a colocar o pedaço de tecido e o ladrilho nos seus lugares, ergueu-se cuidadosamente e esgueirou-se para o seu quarto. Ali se deixou ficar acordada durante muito tempo, na escuridão cheia com o ulular do vento, vendo constantemente na sua frente o esplendor de cristal que reluzira na casa da morte, o fogo suave que não ardia, as pedras da parede do túnel e o rosto calmo do homem adormecido.
6. ARMADILHA PARA UM HOMEM
No dia seguinte, depois de terminadas as suas tarefas nos vários templos c o ensino das danças sagradas às noviças, Arha esgueirou-se para a Casa Pequena e, depois de pôr o quarto na penumbra, abriu o orifício de observação e espreitou lá para dentro. Não havia luz. O estranho fora-se embora. A rapariga não pensara que ele fosse ficar tanto tempo junto da porta inútil, mas era o único sítio que conhecia onde o procurar. Como poderia agora encontrá-lo se ele se perdera?
Os túneis do Labirinto, segundo as indicações de Thar e a sua própria experiência, estendiam-se, com todas as suas voltas, bifurcações, espirais e becos sem saída, por mais de vinte milhas. O beco que ficava mais afastado dos Túmulos não estaria provavelmente a mais de uma milha de distância, em linha reta. Mas lá em baixo, no subsolo, nada corria a direito. Todos os túneis encurvavam, se dividiam, voltavam a reunir, se ramificavam, entrelaçando-se, formando nós, traçando rotas elaboradas que acabavam onde tinham começado, porque não havia início nem fim. Podia ir-se continuando, continuando, continuando e mesmo assim não chegar a lado algum porque não havia lado algum onde chegar. Não havia um centro, um coração, daquela teia. E, uma vez fechada a porta, deixava de ter fim. Nenhuma direção era certa.
Embora os caminhos e voltas para alcançar as várias salas e regiões estivessem firmemente implantados na memória de Arha, mesmo ela levara consigo um novelo de fio fino, deixando-o desenrolar atrás de si e voltando a enrolá-lo ao segui-lo, de regresso das suas mais longas explorações. Porque se uma das voltas e passagens que era necessário contar lhe escapasse, até ela se perderia. Uma luz não seria de qualquer ajuda, pois não havia pontos de referência. Todos os corredores, todas as entradas e aberturas eram idênticas.
O estranho podia ter andado já milhas e, mesmo assim, não estar a mais de dez metros da porta por onde entrara.
Arha foi à Mansão do Trono e ao templo dos Irmãos-Deuses, bem como à cave por baixo das cozinhas e, escolhendo um momento em que se encontrava sozinha, olhou por todos os orifícios de observação para dentro da fria e espessa escuridão. Quando a noite chegou, gélida e resplandescente de estrelas, foi a certos pontos da Colina e levantou determinadas pedras, espreitou lá para baixo e voltou a deparar a escuridão sem estrelas.
Ele estava ali. Tinha de lá estar. E no entanto escapara-lhe e ia morrer de sede antes que o encontrasse. Teria de enviar Manane a procurá-lo pelo dédalo, logo que estivesse certa da sua morte. Era insuportável pensar nisso. Ajoelhada, sob a luz fria das estrelas, no chão amargo da Colina, sentiu lágrimas de raiva a brotarem-lhe dos olhos.
Voltou para trás, descendo o caminho que conduzia ao templo do Rei-Deus. As colunas, com os seus capitéis esculpidos, surgiam brancas de geada à luz das estrelas, como pilares de osso. Bateu à porta das traseiras e Kossil franqueou-lhe a entrada.
— A que vem a minha senhora? — perguntou a rotunda mulher, com a sua expressão de fria vigilância.
— Sacerdotisa, está um homem dentro do Labirinto.
Kossil foi apanhada desprevenida. Ao menos uma vez, acontecera alguma coisa de que não estava à espera. Limitou-se a ficar ali, ereta e de olhos arregalados. Os seus olhos pareceram inchar um pouco. Pelo espírito de Arha perpassou a idéia de que Kossil se parecia imenso com Penthé a imitar Kossil e um riso louco subiu por ela dentro, foi reprimido e desapareceu.
— Um homem? No Labirinto?
— Sim, um homem. Um estranho. — E logo, como Kossil a encarasse com descrença, acrescentou: — Eu sei reconhecer um homem, embora tenha visto poucos.