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Mas enquanto ele ali estivesse, a própria Arha nunca seria capaz de entrar no Labirinto. «Porque não?», perguntou a si própria e replicou: — «Porque ele podia escapar-se pela porta de ferro que eu teria de deixar aberta atrás de mim…» Mas não conseguiria ir mais além que o Subtúmulo. A verdade é que ela tinha medo de o enfrentar. Tinha medo do seu poder, das artes que usara para entrar no Subtúmulo, do bruxedo que mantinha viva aquela sua luz. E no entanto, haveria razão para tanto temer tais coisas? Os poderes que imperavam nos lugares da escuridão estavam do lado dela, não dele. Era evidente que ali, no domínio d’Aqueles-que-não-têm-Nome, o estranho não podia fazer muita coisa. Não conseguira abrir a porta de ferro. Não conjurara comida mágica, nem trouxera água através da parede, nem fizera aparecer nenhum monstro demoníaco que deitasse abaixo as paredes, tudo coisas que temera que ele pudesse ser capaz de fazer. Nem conseguira, vagueando durante três dias, dar com o caminho para a porta do Grande Tesouro que certamente procurara. A própria Arha nunca seguira as indicações de Thar até essa câmara, adiando e voltando a adiar essa jornada, por um certo temor respeitoso, uma relutância, uma sensação de que não chegara ainda o momento.

E agora pensava, porque não faria ele essa jornada por ela? O estrangeiro podia olhar tanto quanto lhe desejasse os tesouros dos Túmulos. Pelo bem que lhe podiam fazer! E ela poderia troçar dele, dizer-lhe que comesse o ouro e bebesse os diamantes.

Com a pressa nervosa, febril, que a possuíra durante todos aqueles três dias, correu para o templo dos Deuses Gêmeos, abriu a pequena câmara do tesouro e destapou o orifício de observação, bem oculto no chão.

A Sala Pintada ficava por baixo, mas estava escura como breu. O caminho que o homem tinha de percorrer era muito mais desviado, milhas mais longo talvez. Arha esquecera isso. E por certo o estranho estava cansado, não podia andar depressa. Talvez esquecesse as indicações que lhe dera e virasse onde não devia. Poucas pessoas conseguiam, como ela, reter indicações depois de as ouvir só uma vez. Talvez ele nem sequer entendesse a língua em que ela falava. Pois se assim fosse, que fosse vagueando até cair e morrer no meio da escuridão, o idiota, o estranho, o infiel. Que o seu fantasma gemesse pelas estradas de pedra dos Túmulos de Atuan até que o negrume mesmo isso devorasse…

Na manhã seguinte, muito cedo, após uma noite de pouco sono e maus sonhos, Arha regressou ao orifício de observação no pequeno templo. Olhou para baixo e nada viu. Negrume. Fez descer uma vela acesa numa pequena lanterna de estanho suspensa de uma corrente. Ele estava ali, na Sala Pintada. Viu, para lá do halo de luz da vela, as pernas do estranho, uma mão inerte. Falou para dentro do orifício, que era grande, tanto como todo um dos ladrilhos do soalho, chamando:

— Feiticeiro!

Não houve movimento. Estaria morto? Teria sido aquela toda a força que houvera nele? Sorriu trocistamente. Sentiu o coração bater mais rápido. «Feiticeiro!», bradou, com a voz a retinir na câmara oca por baixo dela. O estranho moveu-se e, lentamente, endireitou o tronco e olhou em volta, confuso. Um pouco depois, ergueu o rosto, pestanejando perante a pequena lanterna que balançava, suspensa do teto. O seu rosto estava terrível de se ver, inchado e escuro como o de uma múmia.

Estendeu a mão para o bordão que jazia no solo junto dele, mas não houve luz alguma que desabrochasse na madeira. Não havia já poder nele.

— Queres ver o tesouro dos Túmulos de Atuan, feiticeiro?

Ele olhou cansadamente para cima, semicerrando os olhos para a luz da lanterna que era tudo o que conseguia ver. Pouco depois, com uma careta que poderia ter-se iniciado como sorriso, assentiu com um único movimento de cabeça.

— Sai desta sala e volta à direita. Segue o primeiro corredor para a esquerda… — e foi desbobinando a longa série de indicações sem fazer uma única pausa. No fim, disse: — Aí vais encontrar o tesouro que te trouxe aqui. E lá, talvez encontres água. O que é que preferias ter agora, feiticeiro? O tesouro ou a água?

Amparando-se ao bordão, o estranho pôs-se de pé. Olhando para cima com olhos que não podiam vê-la, tentou dizer qualquer coisa mas não havia voz na sua garganta seca. Encolheu ligeiramente os ombros e saiu da Sala Pintada.

Ela não lhe daria água alguma. De qualquer maneira, o estranho nunca conseguiria dar com o caminho para a câmara do tesouro. As indicações eram demasiado extensas para ele as poder decorar. E, ainda que lá chegasse, havia o Poço. Ele agora estava na escuridão. Ia perder-se, acabaria por cair, morreria nalgum lado daquelas câmaras estreitas, ocas e secas. E Manane encontrá-lo-ia, arrastá-lo-ia cá para fora. E esse seria o fim. Arha agarrou com ambas as mãos as beiras do orifício de observação e pôs-se a balançar o corpo agachado para trás e para a frente, para trás e para a frente, mordendo o lábio inferior como se tentasse suportar alguma terrível dor. Ela não lhe daria água alguma. Não, não lhe daria água alguma. Dar-lhe-ia morte, morte, morte, morte, morte…

Nessa hora cinzenta da sua vida, Kossil veio ter com ela, penetrando na câmara do tesouro com passos pesados, volumosa nas suas negras roupas de Inverno.

— O homem já está morto?

Arha ergueu a cabeça. Não havia lágrimas nos seus olhos, nada a esconder.

— Julgo que sim — respondeu, levantando-se e sacudindo a poeira das saias. — A sua luz extinguiu-se.

— Pode ser algum truque. Os sem-alma são muito matreiros.

— Esperarei um dia para ter a certeza.

— Sim, ou talvez dois. Depois Duby pode ir lá abaixo e trazê-lo. É mais forte que o velho Manane.

— Mas Manane está ao serviço d’Aqueles-que-não-têm-Nome e Duby não. Há lugares dentro do Labirinto onde Duby não deve entrar e o ladrão está num deles.

— Mas, nesse caso, já está profanado e…

— Com a morte dele lá, voltará a ficar purificado — atalhou Arha. Pela expressão de Kossil, percebeu que devia haver algo de estranho na sua própria expressão. — E este é o meu domínio, sacerdotisa. Tenho de o cuidar tal como os meus Senhores me ordenam. Não preciso de mais lições sobre morte.

O rosto de Kossil pareceu recuar para dentro do capuz negro, como uma tartaruga do deserto a meter a cabeça na carapaça, fria, lenta e amarga.

— Muito bem, senhora.

Separaram-se em frente ao altar dos Irmãos-Deuses. Agora sem pressas, Arha encaminhou-se para a Casa Pequena e chamou Manane para que a acompanhasse. Desde que falara com Kossil, sabia o que havia a fazer.

Ela e Manane subiram juntos a Colina, entraram na Mansão, desceram ao Subtúmulo. Segurando o longo puxador e unindo esforços, abriram a porta de ferro do Labirinto. Aí, acenderam as lanternas e entraram. Com Arha a abrir o caminho, seguiram até à Sala Pintada e daí iniciaram a marcha para a Grande Câmara do Tesouro.

O ladrão não conseguira ir muito longe. Não tinham caminhado ainda quinhentos passos no seu tortuoso percurso quando deram com ele, amarfanhado no chão do estreito corredor, como um monte de farrapos deitados para ali. Antes de tombar, deixara cair o bordão que ficara a uma certa distância. Tinha sangue na boca e os olhos semicerrados.

— Está vivo — disse Manane ajoelhando e colocando a grande mão amarela no pescoço escuro, a sentir as pulsações. — Queres que o estrangule, senhora?

— Não. Quero-o vivo. Pega-o e traga-o contigo.

— Vivo? — exclamou Manane, confundido. — Para quê, senhorazinha?

— Para ser escravo dos Túmulos! Pára de falar e faz o que te mando.

Com o rosto mais melancólico que nunca, Manane obedeceu, lançando sem esforço o corpo do jovem para cima do ombro, como um saco comprido. Assim carregado, seguiu Arha com passos vacilantes. Mas não podia ir muito longe e de uma só vez com semelhante peso. Pararam uma dúzia de vezes no caminho de regresso para Manane recuperar o fôlego. A cada alto, o corredor era o mesmo: as pedras de um amarelo acinzentado, bem unidas e erguendo-se a formar a abóbada, o desigual chão de rocha, o ar parado, morto. Manane grunhindo e ofegando, o estranho totalmente inerte, as duas lanternas ardendo numa cúpula de luz que se ia estreitando e desaparecendo na escuridão do corredor, em ambas as direções. A cada parada, Arha deitava umas gotas da água que trouxera num cantil na boca seca do homem, pouco de cada vez, não fosse a vida, ao retornar, matá-lo.