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Trocista, Arha perguntou:

— Então vieste prestar-lhes culto?

— Vim para os roubar — respondeu ele.

Arha estudou-lhe o rosto grave.

— Fanfarrão! — lançou-lhe.

— Sabia que não ia ser fácil.

— Fácil? É impossível. Se não fosses um descrente, saberias isso. Aqueles-que-não-têm-Nome olham pelo que lhes pertence.

— O que eu busco não é deles.

— É teu, claro?

— Meu para o reivindicar.

— Quem és, então? Um deus? Um rei? — E relanceou-o de cima abaixo, ali sentado e preso às correntes, sujo, exausto. — Não passas de um ladrão!

Ele nada disse mas o seu olhar encontrou o dela.

— Não podes olhar para mim! — disse ela em voz aguda.

— Senhora — argumentou ele —, não é minha intenção ofender-te. Sou um estranho e um transgressor. Não conheço os vossos costumes nem a cortesia devida à Sacerdotisa dos Túmulos. Estou à tua mercê e, se te ofendi, peço-te perdão.

Arha permaneceu em silêncio e, num momento, sentiu o sangue subir-lhe às faces, quente e insensato. Mas ele não estava a olhá-la e não a viu corar. Obedecera e desviara dela os escuros olhos.

Por algum tempo, nenhum deles voltou a falar. As figuras pintadas ao seu redor observavam-nos com olhos tristes, cegos.

Arha trouxera um jarro de pedra cheio de água. Os olhos do estranho desviavam-se para aí constantemente e, daí a pouco, ela disse:

— Bebe, se quiseres.

Sem mais delongas, o homem lançou-se para o jarro e, erguendo-o tão facilmente como se fosse uma taça de vinho, bebeu uma longa, muito longa golada. Depois, molhou uma extremidade da manga e, o melhor que lhe foi possível, limpou a sujidade, o sangue coalhado e as teias de aranha do rosto e das mãos. Levou algum tempo a fazer isto, com a rapariga a observá-lo. Depois de terminar, ficou com melhor aspecto, mas o seu banho à gato pusera a descoberto as cicatrizes de um dos lados da cara. Velhas cicatrizes, de há muito curadas, branquejando na sua pele escura, quatro vincos paralelos do olho ao maxilar inferior, quais sulcos deixados por enorme garra.

— O que é isso? — perguntou Arha. — Essa cicatriz.

Ele não respondeu logo.

— Algum dragão? — insistiu ela, tentando troçar. Pois não viera ela ali para escarnecer da sua vítima, para o atormentar com a sua impotência?

— Não. Não foi um dragão.

— Mas então não és, ao menos, um senhor de dragões?

— Não é isso — respondeu ele relutantemente. — Eu sou um senhor de dragões. Mas as cicatrizes foram antes disso. Eu disse-te que me tinha encontrado com os Poderes da Treva antes, noutros lugares da terra. Isto na minha cara é a marca de um dos da raça d’Aqueles-que-não-têm-Nome. Mas esse não é já um sem-nome porque, no fim, eu soube o seu nome.

— Que queres dizer? Que nome?

— Isso não te posso dizer — respondeu ele e sorriu, embora o seu rosto permanecesse grave.

— Tudo isso é disparate, conversa de tolos, sacrilégio. Eles são Aqueles-que-não-têm-Nome! Não sabes de que estás a falar…

— Sei ainda melhor do que tu, Sacerdotisa — contrapôs ele, a voz mais grave ainda. — Olha melhor! — E voltou a cabeça para que ela pudesse ver bem as quatro terríveis marcas que lhe sulcavam a face.

— Não te acredito — disse ela, mas a sua voz tremeu.

— Sacerdotisa — continuou o homem suavemente —, não tens muita idade. Não podes servir os Tenebrosos há muito tempo.

— Mas sirvo. Há muito! Eu sou a Primeira Sacerdotisa, a Renascida. Servi os meus senhores durante mil anos e outros mil anos antes desses. Sou a sua serva e a sua voz e as suas mãos. E sou a sua vingança sobre aqueles que profanam os Túmulos e lançam o olhar sobre o que não é para ser visto! Pára com as tuas mentiras e fanfarronadas. Pois não vês que se eu disser uma palavra que seja, o meu guarda virá e cortar-te-á a cabeça dos ombros? Ou, se me for embora e fechar esta porta, então ninguém aqui virá, nunca, e morrerás aqui, na escuridão, e aqueles que eu sirvo comerão a tua carne e a tua alma e deixarão os teus ossos no meio da poeira?

Tranqüilamente, ele assentiu com um aceno de cabeça. Arha gaguejou e, não encontrando mais nada que dizer, saiu da sala como um pé de vento, fechando a porta atrás de si com estrondo. Deixá-lo pensar que ela não voltaria mais! Deixá-lo suar, no meio da escuridão, deixá-lo praguejar e tremer e tentar lançar os seus nojentos e inúteis bruxedos!

Porém, com os olhos da mente, ela via-o estender-se no chão para dormir, tal como o vira junto à porta de ferro, sereno como um cordeiro num prado banhado pelo sol.

Ela cuspiu na porta trancada, fez o sinal para afastar a profanação e, quase correndo, dirigiu-se para o Subtúmulo.

Enquanto seguia ao longo da parede a caminho do alçapão na Mansão, os seus dedos iam perpassando pelos delicados planos e traçados de rocha, como renda gelada. Percorreu-a uma ânsia de acender a lanterna, para uma vez mais voltar a ver, nem que fosse por um momento, a pedra trabalhada pelo tempo, o maravilhoso brilho das paredes. Cerrou os olhos com toda a força e apressou o passo.

7. O GRANDE TESOURO

Nunca os rituais e deveres do dia lhe tinham parecido tantos, nem tão triviais, nem tão compridos. As garotinhas com os seus pálidos rostos e as suas maneiras furtivas, as noviças turbulentas, as sacerdotisas cujo aspecto era frio e severo, mas cujas vidas eram um secreto emaranhado de invejas e lamentações, de pequenas ambições e paixões estéreis — todas essas mulheres entre as quais sempre vivera e que constituíam para ela o mundo humano, pareciam-lhe agora a um tempo deploráveis e entediantes.

Mas ela que servia grandes poderes, ela que era sacerdotisa da sinistra Noite, ela estava livre de tal mesquinhez. Ela não tinha de se ocupar com a torturante mesquinhez da sua vida comum, dos dias em que a grande delícia era conseguir mais uma colherada de gordura de borrego em cima das lentilhas que a vizinha de mesa… Não, ela estava livre dos dias, de todos eles. No subsolo não havia dias. Era sempre e só noite.

E naquela noite sem fim, o prisioneiro. O homem de pele escura, praticante de escuras artes, envolto em ferro e preso à pedra, à espera que ela viesse ou não viesse, a trazer-lhe água e pão e vida, ou uma faca e a tigela do magarefe e a morte, como muito bem lhe aprouvesse.

Ela não falara a ninguém do homem, senão a Kossil, e Kossil não falara a mais ninguém. Havia já três noites e três dias que ele se encontrava na Sala Pintada e ela ainda nada perguntara a Arha sobre o prisioneiro. Talvez presumisse que estava morto e que Arha encarregara Manane de levar o corpo para a Sala dos Ossos. Não era costume de Kossil aceitar qualquer coisa como certa sem mais aquelas. Porém, Arha dizia para si própria que nada havia de estranho no silêncio da outra mulher. Kossil queria que tudo se passasse em segredo e odiava ter de fazer perguntas. Além disso, Arha dissera-lhe que não se metesse nos seus assuntos. Kossil estava simplesmente a obedecer.

Contudo, como se julgava que o homem estivesse morto, Arha não podia pedir comida para ele. Assim, para além de roubar algumas maçãs e cebolas secas das caves da Casa Grande, ela prescindiu de comer. Mandou que lhe enviassem as refeições da manhã e da tarde para a Casa Pequena, sob o pretexto de que desejava comer sozinha, e todas as noites levava a comida até à Sala Pintada no Labirinto, tudo menos a sopa. Estava habituada a jejuar desde um até quatro dias e aquilo não lhe pareceu nada demais. O indivíduo no Labirinto comia os seus frugais quinhões de pão, queijo e feijões como um sapo come uma mosca: zás! já está. Era evidente que podia devorar cinco ou seis vezes mais. Mas agradecia-lhe sobriamente, como se fosse seu hóspede e ela a anfitriã a uma dessas mesas de que ela ouvira falar em descrições de festas no palácio do Rei-Deus, mesas postas com carnes assadas, pão barrado com manteiga, vinho servido em taças de cristal. O estranho era muito estranho.