— Como é que é nas Terras Interiores?
Arha trouxera ali para baixo um pequeno banco de pernas em cruz, feito de marfim, para não ter de ficar em pé enquanto o interrogava, mas também sem ter de se sentar no chão, ao nível dele.
— Bom, há muitas ilhas. Quatro vezes quarenta, diz-se, só no Arquipélago. E depois há as Estremas. Jamais homem algum navegou por todas as Estremas ou contou todas as terras. E cada uma é diferente de todas as outras. Mas talvez a mais bela entre todas seja Havnor, a grande terra no centro do mundo. E no coração de Havnor, numa vasta baía cheia de navios, fica a cidade de Havnor. As torres da cidade são construídas de mármore branco. A casa de cada príncipe e de cada mercador tem a sua torre, de maneira que elas se erguem, umas acima das outras. Os telhados das casas são em telha vermelha e todas as pontes sobre os canais são cobertas de mosaico, vermelho, azul e verde. E os pendões dos príncipes são de todas as cores, flutuando no cimo das torres brancas. Na mais alta de todas as torres está colocada, como um pináculo, erguida para o céu, a Espada de Erreth-Akbe. Quando o Sol se ergue sobre Havnor e sobre a sua lâmina que primeiro brilha e, quando se põe, a Espada permanece ainda dourada por sobre o crepúsculo durante algum tempo.
— Quem era Erreth-Akbe? — perguntou Arha, dissimulada.
O estranho ergueu os olhos para ela. Não disse nada, mas arreganhou ligeiramente os dentes. Depois, como se considerasse melhor, disse:
— É verdade, pouco deves saber acerca dele por aqui. Nada para além do fato de ter vindo até às terras karguianas, talvez. E dessa história, o que saberás?
— Sei que perdeu o bordão, o amuleto e o poder… como tu — respondeu ela. — Escapou ao Grão-Sacerdote e fugiu para o Ocidente, onde foi morto por dragões. Mas se ele tivesse vindo até aqui, aos Túmulos, não teria havido necessidade de dragões.
— Bem verdade — retorquiu o prisioneiro.
Arha não queria falar mais de Erreth-Akbe, pressentindo um perigo no assunto. — Dizem que ele era um senhor de dragões. E tu também dizes ser um. Explica-me, o que é um senhor de dragões?
O seu tom era sempre trocista, as respostas dele diretas e sem arrebiques, como se o prisioneiro lhe aceitasse as perguntas de boa-fé.
— Alguém com quem os dragões falem — explicou ele — é um senhor de dragões. Ou, pelo menos, aí reside o centro da questão. Não é um truque para dominar os dragões, como muita gente pensa. Os dragões não têm amos. Com um dragão, a questão é sempre a mesma. Fala conosco ou come-nos? Se pudermos confiar em que ele faça a primeira coisa, e em que não faça a segunda, então somos senhores de dragões.
— Os dragões sabem falar?
— Certamente! Na Antiga Fala, a língua que nós, homens, aprendemos com tanta dificuldade e que usamos de forma tão deficiente, para fazermos os nossos encantamentos de magia e de dar forma. Nenhum homem conhece totalmente essa língua, nem um décimo dela. Não tem tempo para a aprender. Mas os dragões vivem mil anos… Vale a pena falar com eles, como já te deves ter apercebido.
— Há dragões aqui, em Atuan?
— Há muitos séculos que não, creio eu, nem em Karego-At. Mas na vossa ilha mais a norte, em Hur-at-Hur, dizem que ainda há grandes dragões nas montanhas. Nas Terras Interiores, mantêm-se agora pelas regiões mais longínquas a ocidente, na remota Estrema Oeste, ilhas onde não vivem homens e poucos lá vão. Se lhes dá a fome, assaltam as terras para leste deles, mas isso raramente acontece. Já vi a ilha onde se juntam para dançar. Com as suas grandes asas, voam em espirais, entrecruzando-se, subindo mais alto, cada vez mais alto por sobre o mar ocidental, como um redemoinho de folhas amarelas no Outono.
Perdidos na visão, os seus olhos atravessavam as pinturas negras das paredes, e para lá das paredes, do solo e do negrume viam o mar aberto estendendo-se ininterruptamente até ao pôr do Sol, os dragões dourados no dourado vento.
— Estás a mentir — acusou a rapariga com ferocidade. — Estás a inventar tudo isso.
Ele olhou-a, sobressaltado.
— Mas porque haveria eu de te mentir, Arha?
— Para me fazeres sentir idiota, e estúpida, e assustada. Para te mostrares inteligente, e corajoso, e poderoso, e mais um senhor de dragões e isto e aquilo. Viste dragões a dançar, viste as torres em Havnor, sabes tudo acerca de todas as coisas. E eu não sei nada de nada e nunca estive em lado nenhum. Mas tudo o que tu sabes são mentiras! Tu não és nada senão um ladrão e um prisioneiro, e não tens alma, e não deixarás nunca este lugar. Não interessa que haja oceanos e dragões, nem torres brancas nem nada disso, porque nunca mais os voltarás a ver, nunca mais verás a luz do sol. Tudo o que eu conheço é a escuridão, a noite subterrânea. E é tudo o que realmente existe. No fim, é a única coisa que há para conhecer. O silêncio e a escuridão. Tu sabes tudo, feiticeiro. Mas eu sei uma coisa, a única coisa verdadeira!
Ele inclinou a cabeça para o peito. As suas longas mãos, de um castanho de cobre, estavam calmamente pousadas nos seus joelhos. Ela olhou-lhe a quádrupla cicatriz na face. Ele fora mais longe que ela no negrume. Ele conhecia a morte melhor que ela, até a morte… Uma vaga de ódio contra ele ergueu-se no peito, sufocando-a por um instante. Porque estava ele para ali sentado, tão indefeso e tão forte? Porque não conseguia ela derrotá-lo?
— Foi por isto que eu te deixei viver — disse ela subitamente, sem a mínima premeditação. — Quero que me mostres como são feitos os truques dos bruxos. Enquanto tiveres alguma arte para me ensinares, continuas vivo. Se não tiveres nenhuma, se for tudo tolice e mentiras, então não me serves de nada. Estás a entender?
— Estou.
— Muito bem. Continua.
Durante um minuto, ele apoiou a cabeça nas mãos e mudou ligeiramente de posição. A cinta de ferro impedia-o de ficar verdadeiramente confortável, a não ser que se deitasse ao comprido. Finalmente, ergueu a cabeça e falou muito gravemente.
— Ouve, Arha. Eu sou um Mago, aquilo a que tu chamas um bruxo. Tenho certas artes e poderes. Isso é verdade. É verdade também que aqui, no Lugar dos Antigos Poderes, a minha força é pouca e o meu saber de pouco me serve. Ora eu podia criar ilusões para ti e mostrar-te toda a espécie de maravilhas. Essa é a parte menor da feitiçaria. Já podia criar ilusões quando era ainda uma criança. Mesmo aqui as posso criar. Mas se acreditares nelas, assustar-te-ão e poderás desejar matar-me se o medo te enfurecer. E se não acreditares nelas, vê-las-ás apenas como mentiras e idiotice, como tu dizes. E aí ponho eu de novo a minha vida em risco. Ora a minha intenção e desejo, neste momento, é continuar vivo.
Isto fê-la rir e ela disse:
— Oh, ainda vais ficar vivo durante algum tempo, não consegues ver isso? És tão estúpido! Pois bem, mostra-me essas ilusões. Agora que sei que são falsas, não terei medo delas. Aliás, não lhes teria medo se fossem reais. Mas anda lá. A tua preciosa pele está a salvo, pelo menos por esta noite.
Perante isto, ele riu, como ela o fizera um momento antes. Lançavam a vida dele de um para o outro como se brincassem com uma bola.
— Que queres que te mostre?
— Que podes mostrar-me?
— Tudo.
— Estás sempre a gabar-te!
— Não — retorquiu ele, evidentemente um pouco ressentido. — Não estou. Seja como for, não era essa a minha intenção.
— Mostra-me alguma coisa que tu aches que merece a pena ser vista. Qualquer coisa!