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Ele inclinou a cabeça e, por momentos, fitou as mãos. Nada aconteceu. A vela de sebo continuava a arder na lanterna, a sua chama firme e fraca. As figuras negras da parede, com as suas asas de pássaro que não se abriam para voar, os seus olhos pintados de vermelho e branco, ambos baços, avultavam sobre ambos. Não se ouvia som algum. Ela soltou um suspiro, desapontada e, de certa maneira, magoada. Ele era fraco. Falava de grandes coisas, mas não fazia nada. Não era mais que um bom mentiroso e nem sequer um ladrão capaz.

— Bom — pronunciou ela por fim, aconchegando as saias para se levantar. Mas a lã sussurrou estranhamente a esse movimento. Olhou para baixo, para si própria, e pôs-se de pé, sobressaltada.

As pesadas roupas negras que havia anos usava tinham desaparecido. O seu vestido era de seda azul-turquesa, brilhante e macia como o céu do entardecer. Abria-se em grande roda a partir das ancas e toda a saia estava bordada com delicados fios de prata, minúsculas pérolas e pedacinhos de cristal, de modo que toda ela cintilava suavemente, como a chuva de Abril.

Incapaz de falar, olhou o mago.

— Gostas? — perguntou ele.

— Mas onde?…

— É como um vestido que vi certa vez uma princesa usar, no Festival do Regresso do Sol, no Palácio Novo em Havnor — informou o feiticeiro, olhando-o com satisfação. — Disseste-me que te mostrasse alguma coisa que valesse a pena ver. Mostro-te a ti.

— Faça… faça desaparecer.

— Mas tu deste-me o teu manto — insistiu ele em tom de censura. — Não poderei eu dar-te nada em troca? Mas pronto, não te preocupes. É só ilusão. Repara.

Não pareceu que levantasse sequer um dedo e de certeza que não disse uma palavra, mas o esplendor azul da seda desapareceu e ela envergava de novo a sua roupa de severo negro.

Por momentos ainda se deixou ela ficar imóvel.

— Como é que eu sei — disse por fim —, que tu és o que pareces ser?

— Não sabes — respondeu o mago. — Eu não sei o que te pareço ser.

A rapariga voltou a cismar.

— Tu podias levar-me a ver-te como…

E interrompeu-se porque ele levantara a mão e apontava para cima, no mero esboço de um gesto. Julgando que ele lhe lançava algum feitiço, Arha aproximou-se rapidamente da porta, mas, seguindo a direção do gesto, os seus olhos deram, lá no cimo do teto escuro e arqueado, com o pequeno quadrado que era o orifício de observação da câmara do tesouro, no templo dos Deuses Gêmeos.

Não vinha qualquer luz do orifício. Não conseguia ver nada, nem ouvir ninguém, lá no alto. Mas o olhar interrogativo do homem pousava sobre ela.

Durante algum tempo, permaneceram ambos perfeitamente imóveis. Finalmente, ela pronunciou distintamente:

— A tua magia não passa de tonteira para olhos de crianças. São truques e mentiras. Já vi que chegasse. Vais ser dado a comer Aqueles-que-não-têm-Nome. Não voltarei mais aqui.

Pegou na lanterna, saiu e fez correr os ferrolhos da porta firme e ruidosamente. Depois parou e, consternada, deixou-se ali ficar, do lado de fora da porta. Que havia de fazer? Quanto teria Kossil visto ou ouvido? Que tinham eles estado a dizer? Não conseguia lembrar-se. Parecia que nunca conseguia dizer ao prisioneiro aquilo que pretendia dizer-lhe. Ele confundia-a sempre com as suas conversas acerca de dragões e torres e dar nomes aos Sem-Nome. E mais o querer ficar vivo e agradecer o manto que ela lhe dera. Nunca dizia o que se esperava que dissesse. Nem sequer o interrogara a respeito do talismã que trazia ainda, oculto junto ao seio.

E ainda bem que assim fora, já que Kossil estivera a ouvir. E depois, que importava isso, que mal podia Kossil fazer? E ainda estava a formular a pergunta para si própria, já sabia a resposta. Nada é mais fácil de matar que um falcão engaiolado. O homem estava impotente, acorrentado dentro da sua gaiola de pedra. A Sacerdotisa do Rei-Deus só tinha de enviar o seu servo Duby para o estrangular naquela noite. E mesmo que ela e Duby não conhecessem o Labirinto até tão longe, bastava-lhe soprar pó-de-veneno pelo orifício de observação para dentro da Sala Pintada. Ela tinha caixas e frascos de maléficas substâncias, algumas para envenenar a comida ou a água, outras que contaminavam o ar e matavam alguém que respirasse esse ar durante muito tempo. E ele estaria morto de manhã c tudo se teria acabado. Não mais voltaria a brilhar uma luz sob os Túmulos.

Arha apressou-se a percorrer os estreitos caminhos de pedra até à entrada pelo Subtúmulo, onde Manane a esperava, agachado pacientemente no escuro, como um velho sapo. O eunuco não estava sossegado com as visitas de Arha ao prisioneiro. Como ela não o deixava ir até junto dele, tinham estabelecido aquele compromisso. Mas agora Arha estava satisfeita por tê-lo à mão. Ao menos nele podia confiar.

— Ouve, Manane. Tens de ir à Sala Pintada imediatamente. Dizes ao homem que o vais levar para ser enterrado vivo por baixo dos Túmulos.

Ao ouvir isto, os olhinhos de Manane faiscaram. Ela continuou:

— Dizes isso em voz alta. Depois, abres o cadeado da corrente e levá-lo…

E aqui interrompeu-se porque não decidira ainda onde melhor poderia esconder o prisioneiro.

— Para o Subtúmulo — disse Manane, animadamente.

— Não, idiota. Eu disse-te para dizeres isso, não para o fazeres. Espera…

Que lugar poderia estar a salvo de Kossil e dos seus espiões? Nenhum a não ser os mais profundos lugares do subsolo, os mais sagrados e melhor ocultos lugares do domínio dos Sem-Nome, onde Kossil não se atreveria a ir. Mas não era Kossil capaz praticamente de tudo? Poderia temer os lugares mais escuros, porém era alguém capaz de dominar o medo para atingir os seus fins? Ninguém saberia dizer até que ponto poderia ela ter aprendido o plano do Labirinto, com Thar ou com Arha da vida anterior ou mesmo através das suas próprias e secretas explorações, realizadas nos anos anteriores. Arha suspeitava de que ela soubesse muito mais do que demonstrava saber. Mas havia um caminho que ela certamente não poderia ter aprendido, o mais bem guardado dos segredos.

— Vais ter de levar o homem até onde eu te conduzir e terás de o fazer no escuro. Depois, quando eu te trouxer de volta aqui, vais abrir uma cova no Subtúmulo e fazer um caixão para lá meter. Em seguida, pões o caixão, vazio, na cova, voltas a encher a cova com terra, mas de maneira a que se possa sentir ao apalpar e descobrir, para o caso de alguém a procurar. Uma cova bem funda. Percebes?

— Não — retorquiu Manane, obstinado e inquieto. — Essa manha não é sensata. Não está bem. Não devia haver um homem aqui! Vai chegar algum castigo e…

— Como o de um velho tonto a ficar sem língua, não é? Atreves-te a dizer-me o que é sensato ou não? Eu sigo as ordens dos Poderes da Treva. Vem comigo!

— Peço perdão, senhorazinha, peço perdão… Regressaram à Sala Pintada. Ali, ela ficou à espera cá fora, no túnel, enquanto Manane entrava e soltava a corrente da argola na parede. Ouviu a voz profunda que dizia:

— E agora para onde, Manane?

E logo a voz rouquejante e aguda do eunuco, a responder de mau grado:

— Vais ser enterrado vivo, disse a minha senhora. Debaixo das Pedras Tumulares. Levanta-te!

E a rapariga ouviu a pesada corrente estalar como uma vergasta.

O prisioneiro saiu, trazendo os braços atados com o cinto de couro de Manane. Este vinha atrás, segurando-o como a um cão com trela curta, mas a coleira estava à roda da sua cintura e a trela era de ferro. Os olhos do mago viraram-se para a rapariga mas ela soprou para apagar a vela e, sem uma palavra, embrenhou-se na escuridão. Tomou imediatamente a passada lenta mas bastante regular que geralmente mantinha no Labirinto, quando não se servia de nenhuma luz, passando muito ao de leve, mas quase constantemente, as pontas dos dedos pelas paredes de ambos os lados. Manane e o prisioneiro seguiam atrás dela, com muito menos segurança por causa da trela, arrastando os pés, tropeçando aqui e ali. Mas era no escuro que tinham de seguir, pois ela não queria que nenhum deles aprendesse aquele caminho.