— Quando a Primeira Sacerdotisa morre, vão em busca por toda a Atuan de uma criança do sexo feminino que tenha nascido na noite em que a Sacerdotisa morreu. E encontram sempre uma. Porque é a Sacerdotisa renascida. Quando a criança chega aos cinco anos, trazem-na para aqui, para o Lugar. E ao fazer os seis, é oferecida aos Senhores da Treva que lhe devoram a alma. E assim pertence-lhes e sempre lhes pertenceu, desde o princípio dos tempos. E não tem nome.
— Acreditas nisso?
— Sempre acreditei.
— Mas acreditas agora?
Ela nada disse.
Uma vez mais o silêncio ensombrado caiu entre eles. Passado muito tempo, ela disse-lhe:
— Conta-me… conta-me dos dragões, no Ocidente.
— Tenar, que vais tu fazer? Não podemos ficar aqui a contar histórias um ao outro até que a vela se apague e a escuridão regresse de novo.
— Mas eu não sei o que fazer. Tenho medo. — Sentada muito direita na arca de pedra, enclavinhou as mãos uma na outra e, como alguém que sofre uma dor, confessou alto: — Tenho medo do escuro.
Suavemente, ele respondeu:
— Tens de fazer uma escolha. Ou me deixas, fechas a porta, sobes aos teus altares e me entregas aos teus Senhores. E depois vais ter com Kossil, fazes as pazes com ela… e esse é o fim da história. Ou então abres a porta e sais comigo. Deixa os Túmulos, deixa Atuan e vem comigo até ao outro lado do mar. E esse é o início da história. Tu tens de ser ou Arha ou Tenar. Não podes ser as duas.
A voz profunda era amiga e segura. Por entre as sombras, ela olhou-lhe o rosto, um rosto duro e sulcado de cicatrizes, mas onde não havia crueldade nem engano.
— Se eu abandonar o serviço dos Senhores da Treva, eles matam-me. Se deixar este lugar, morro.
— Não. Tu não morres. É Arha que morre.
— Não posso…
— Para renascer é preciso morrer, Tenar. Não é tão difícil como parece visto do outro lado.
— Eles nunca nos deixariam sair daqui. Nunca.
— Talvez não. Mas, mesmo assim, vale a pena tentar. Tu tens o saber, eu tenho a perícia e os dois juntos temos…
Ele fez uma pausa e a rapariga disse:
— O Anel de Erreth-Akbe.
— Sim, também. Mas também pensei numa outra coisa que há entre nós. Chama-lhe confiança… É um dos nomes que tem. E é uma coisa muito grande. Embora cada um de nós, por si, seja fraco, tendo isso, essa confiança, somos fortes, mais fortes que os Poderes da Treva.
Os olhos brilhavam-lhe, claros, na cara sulcada de cicatrizes. E continuou:
— Escuta, Tenar! Vim até aqui como um ladrão, um inimigo, armado contra ti. E tu foste clemente para comigo e confiaste em mim. Mas também eu confiei em ti desde o primeiro momento em que vi o teu rosto, apenas por um momento na caverna sob os Túmulos, belo na escuridão. Já deste provas da confiança que tens em mim, mas eu ainda não retribuí. Dar-te-ei o que tenho para dar. O meu nome-verdadeiro é Gued. E isto é teu para que o guardes contigo.
Erguera-se e estendia-lhe um semicírculo de prata, perfurado com vários orifícios e cinzelado.
— Que se reúnam as partes do anel — disse ele.
A rapariga recebeu a metade da mão de Gued. Retirou do pescoço a corrente de prata de onde pendia a outra metade e soltou-a. Colocou as duas metades na palma da mão, com as arestas quebradas a tocarem-se, e o anel parecia inteiro.
Ela não ergueu o rosto.
— Irei contigo — disse.
10. A IRA DA TREVA
Ao ouvir aquelas palavras, o homem chamado Gued pôs a mão sobre a dela, a que segurava o talismã quebrado. Sobressaltada, a rapariga ergueu os olhos e viu-o transbordando de vida e glória, sorrindo. Tomou-a uma consternação, um receio dele. Mas o feiticeiro disse:
— Libertaste-nos a ambos. Sozinho, ninguém conquista a liberdade. Anda. Não percamos tempo, enquanto ainda tivermos tempo! Mostra-me outra vez, só por um momento.
A rapariga fechara os dedos sobre os dois pedaços de prata mas, ao pedido dele, voltou a abrir a mão e a estendê-la, ainda com as arestas quebradas a tocarem-se.
Ele não pegou nos pedaços, limitando-se a pôr os dedos sobre eles. Disse duas palavras que ela não entendeu e, subitamente, o suor brotou-lhe do rosto. De imediato, a rapariga sentiu na mão um ligeiro e estranho tremor, como se um animalzinho ali adormecido se movesse. Gued suspirou. A sua postura tensa descontraiu-se e ele limpou a fronte.
— Pronto — disse. E, pegando no Anel de Erreth-Akbe, fê-lo deslizar sobre os dedos da mão direita da rapariga, com alguma estreiteza pela própria mão e logo subindo, a abraçar o pulso.
— Pronto! — repetiu, olhando o anel com satisfação. — Serve-te. Deve ser uma pulseira de mulher, ou de criança.
— Irá agüentar? — murmurou ela, nervosamente, apalpando a tira de prata que deslizava, fria e delicada, no seu braço delgado.
— Vai, sim. Eu não podia lançar uma simples encantamento de consertar sobre o Anel de Erreth-Akbe, como uma bruxa de aldeia a remendar uma chaleira. Tive de usar uma encantamento de configurar para o deixar inteiro. E agora está intacto como se nunca tivesse sido quebrado. Tenar, temos de ir. Eu levo o saco e o frasco. Põe o teu manto. Falta mais alguma coisa?
Estava ela já a remexer na porta, para a abrir, quando ele disse:
— Quem me dera ter o meu bordão.
Ao que ela retorquiu, sempre num murmúrio:
— Está mesmo aí, fora da porta. Eu trouxe-o.
— E porque foi que o trouxeste? — inquiriu ele com curiosidade.
— Tinha pensado em… em levar-te até à porta. Em deixar-te partir.
— Essa era uma escolha que não te cabia. Podias manter-me escravo e ser uma escrava. Ou libertares-me e ficares livre comigo. Anda, pequenina, toma coragem, dá volta à chave.
Ela fez rodar a chave com o seu dragão esculpido e abriu a porta para o corredor baixo e negro. Saiu da Sala do Tesouro dos Túmulos com o anel de Erreth-Akbe a envolver-lhe o braço e o homem seguiu-a.
Havia uma surda vibração, algo que não chegava a ser ruído, na rocha das paredes, chão, abóbada. Era como um trovejar muito ao longe, como algo enorme a cair a uma grande distância.
O cabelo da rapariga pôs-se em pé e, sem parar para pensar, ela soprou a vela da lanterna de estanho. Ouviu, por trás de si, o homem a movimentar-se. A sua voz calma disse, tão perto que a respiração lhe agitou o cabelo:
— Deixa a lanterna. Eu posso fazer luz se for necessário. Que horas são lá fora?
— Já passava muito da meia-noite quando vim.
— Então temos de seguir.
Mas não se moveu e a rapariga percebeu que tinha de o guiar. Só ela conhecia o caminho de saída do Labirinto e ele estava à espera para a seguir. Começou a caminhar, vergando o dorso porque ali o túnel era muito baixo, mas mantendo um andamento bastante rápido. De passagens invisíveis que lhes atravessavam o caminho vinha um sopro frio e um odor penetrante, bafento, o cheiro sem vida do enorme vácuo abaixo deles. Quando a passagem se tornou um pouco mais alta, permitindo-lhe endireitar-se, a rapariga passou a andar mais devagar, contando os passos que os aproximavam do poço. Pisando levemente, sensível a todos os movimentos dela, Gued seguia-a a pouca distância. E, no instante em que ela estacou, fez o mesmo.
— Aqui está o poço — sussurrou a rapariga. — Não consigo encontrar a beira. Não, aqui está. Tem cuidado. Tenho a impressão de que as pedras se estão a soltar… Não, não, espera. Estão mesmo soltas…
Recuou para terreno firme, ao sentir as pedras tremerem-lhe debaixo dos pés. O homem pegou-lhe no braço e segurou-a. O coração batia fortemente.