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A voz áspera de Manane adquiria uma sonoridade estranha sempre que dizia aquilo e os seus olhos pequeninos ocultavam-se totalmente nas pregas das pálpebras. Fazia uma pausa e só depois prosseguia.

— E assim descobrimos todos aqueles que tinham tido filhos nascidos nos últimos meses e com todos falamos. E alguns mentiam-nos, dizendo: «Oh, sim, claro que a nossa menina nasceu no terceiro dia da Lua!» Porque, sabes, para a gente pobre convém sempre ver-se livre das filhas. E havia outros que eram tão pobres, vivendo em choupanas isoladas nos vales altos das montanhas, que não mantinham a conta dos dias e mal sabiam como determinar o mudar do tempo, de modo que não tinham bem a certeza da idade dos bebês. Porém, desde que os interrogássemos o tempo suficiente, conseguíamos sempre chegar à verdade. Só que era um trabalho moroso. Por fim, encontramos uma menina numa aldeia com umas dez casas, nos vales de pomares para ocidente de Entat. Oito meses tinha já a criança, tão longa fora a nossa busca. Mas nascera na noite em que a Sacerdotisa dos Túmulos tinha morrido, e dentro da própria hora da morte. E que bela criança era, sentada muito direita nos joelhos da mãe e a mirar-nos a todos com olhos muito brilhantes, enquanto nos apinhávamos na única divisão da casa, como morcegos numa gruta! O pai era um pobre homem. Cuidava das macieiras no pomar do homem rico do lugar e de seu nada tinha para além de cinco crianças e uma cabra. Nem sequer a casa era dele. Ali estávamos, pois todos em monte e era fácil de ver pelo modo como as sacerdotisas olhavam para a bebê e falavam entre elas que acreditavam ter encontrado finalmente a Sempre Renascida. E isso também a mãe via. Segurava a criança nos braços sem dizer palavra. Bom, portanto voltamos no dia seguinte. E não queres lá ver? A bebezinha dos olhos brilhantes estava deitada num berço de junco, a chorar e a gritar, cheia de vergões e borbulhagem vermelha, de febre, e a mãe a bradar ainda mais alto que a criança: «Ai! Ai! A minha menina foi tocada pelos Dedos-da-Bruxa!» Foi assim que lhe chamou, mas queria dizer as bexigas. Também na minha aldeia lhe chamavam Dedos-da-Bruxa. Mas Kossil, aquela que é agora a Grã-Sacerdotisa do Rei-Deus, foi direita ao berço e pegou na menina. Todos os outros tinham recuado e eu com eles. Não é que dê grande valor à minha vida, mas quem é que vai entrar numa casa onde há bexigas? Mas ela, ela não teve medo. Ergueu a bebê e disse: «Não tem febre nenhuma.» Depois cuspiu no dedo, esfregou com ele as marcas vermelhas e elas saíram. Não passavam de suco de bagas. A pobre tonta da mãe tinha imaginado enganar-nos para ficar com a criança.

Nesta altura, Manane ria com gosto. A sua cara amarelada quase não mudava de expressão, mas percebia-se pelo movimento dos flancos.

— Então o marido bateu-lhe, temendo a cólera da sacerdotisa. E em breve voltamos para o deserto, mas em cada ano alguém da gente do Lugar voltava à aldeia no meio dos pomares de macieiras, a ver como a criança se ia desenvolvendo. Assim se passaram cinco anos e então Thar e Kossil fizeram a jornada, com os guardas do Templo e soldados do elmo vermelho mandados pelo Rei-Deus para as escoltar em segurança. Trouxeram a criança de volta aqui, pois ela era em verdade a Sacerdotisa dos Túmulos renascida e aqui pertencia. E quem era a criança, hã, pequenina?

— Eu — disse Arha, o olhar perdido na lonjura, como se para ver algo que não conseguia ver, algo que se perdera de vista.

Certa vez, perguntou:

— O que foi… o que foi que a mãe fez, quando vieram para lhe tirarem a filha?

Mas Manane não sabia. Ele não acompanhara a sacerdotisa naquela jornada final.

E ela não conseguia lembrar-se. De que serviria recordar? Fora-se, tudo se fora. Tinha vindo para onde devia. Em todo o mundo conhecia apenas um único lugar, o Lugar dos Túmulos de Atuan.

No primeiro ano, ali dormira no grande dormitório, junto das outras noviças, raparigas entre os quatro e os catorze anos. Já então Manane fora escolhido entre os Dez Vigilantes como seu guardião privativo e a sua cama fora preparada numa pequena alcova, parcialmente separada da sala principal, longa e de teto travejado e baixo, do dormitório na Casa Grande, dormitório onde as raparigas trocavam risadinhas e segredos antes de adormecerem, onde bocejavam e entrançavam os cabelos umas às outras na luz cinzenta do amanhecer. Quando o nome lhe foi retirado e se tornou Arha, passou a dormir sozinha na Casa Pequena, na cama e no quarto que iriam ser a sua cama e o seu quarto para o resto da vida. Aquela casa era dela, a Casa da Única Sacerdotisa, e ninguém ali podia entrar sem sua permissão. Quando era ainda muito pequena, gostava de ouvir as pessoas baterem submissamente à sua porta e de lhes dizer «Pode entrar», assim como a aborrecia que as duas Grã-Sacerdotisas, Kossil e Thar, considerassem a sua permissão como coisa certa e lhe entrassem em casa sem bater.

Os dias foram passando, foram passando os anos, sempre iguais. As raparigas do Lugar dos Túmulos passavam o tempo em aulas e exercícios. Não jogavam jogos nenhum. Não havia tempo para jogos. Aprendiam os cantos sagrados e as danças sagradas, as histórias das Terras de Kargad, os mistérios daquele entre os deuses a que eram dedicadas, o Rei-Deus que governava em Áuabath ou os Irmãos Gêmeos, Atuáh e Ualuáh. De todas elas, só Arha aprendera os ritos d’Aqueles-que-não-têm-Nome, e esses foram-lhe ensinados por uma única pessoa, Thar, a Grã-Sacerdotisa dos Irmãos-Deuses. Esse aprendizado retirava-a de junto das outras durante uma hora ou mais por dia, mas a maior parte do seu tempo, tal como o delas, era passado simplesmente a trabalhar. Aprenderam a fiar e a tecer a lã das suas ovelhas. Aprenderam a plantar e a colher, e a preparar os alimentos que sempre comiam: lentilhas, trigo mourisco, moído grosso para fazer uma papa ou em farinha fina para pão ázimo, cebolas, abóboras, queijo de cabra, maçãs e mel.

A melhor coisa que lhes podia acontecer era mandarem-nas pescar no rio escuro e verde que corria através do deserto, uma meia milha a nordeste do Lugar, levando uma maçã ou um pão a servir de almoço, e poderem ficar sentadas todo o dia à luz árida do sol, entre os juncos, vendo correr a água preguiçosa e verde, ou observando a lenta variação na sombra das nuvens sobre as montanhas. Mas se alguma gritava de excitação quando a linha dava uma esticão e conseguia lançar para terra um peixe de escamas brilhantes e corpo chato, um peixe que caía na margem e se afogava no ar, logo Mébeth soltava um silvo como o de uma víbora:

— Chchchcht! Pára de gritar, criança idiota!

Mébeth, que servia no templo do Rei-Deus, era uma mulher de tez escura, jovem ainda mas dura e cortante como obsidiana. A sua paixão era a pesca. Era preciso cair nas suas boas graças e nunca soltar um pio, de outro modo ela nunca mais tornaria a levar a pessoa a pescar, o que significava não voltar mais ao rio, a não ser para pegar água quando, no Verão, o nível nos poços baixava. Essa é que era tarefa aborrecida, arrastar-se sob um calor de brasas durante meia milha até ao rio, encher os dois baldes suspensos da sua vara para o transporte e depois seguir tão depressa quanto possível, colina acima, até ao Lugar. Os primeiros cem metros eram fáceis, mas logo os baldes começavam a pesar mais, a vara a queimar os ombros como uma barra de ferro em brasa, e a luz que cegava, refletida pela brancura do caminho ressequido, e cada passo se tornava mais difícil e mais lento. Chegava-se por fim à sombra fresca no pátio traseiro da Casa Grande, junto à horta, para deitar a água dos baldes para dentro da cisterna com um grande chape. E então era preciso dar meia volta e fazer de novo tudo aquilo, uma vez e outra e outra ainda.