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Ele era alguém cujo poder era semelhante aos Velhos Poderes da terra e tão forte como eles. Alguém que falava com dragões e mantinha terremotos em respeito com uma palavra. E ali estava ele, adormecido sobre a terra, com um pequeno cardo a crescer junto à sua mão. Como era estranho. Viver, estar no mundo, era uma coisa muito maior e mais estranha do que ela alguma vez sonhara. A luz gloriosa do céu tocou o cabelo empoeirado do homem e, por um instante, transformou em ouro o pequeno cardo.

A luz ia-se desvanecendo a pouco e pouco e, ao mesmo tempo, o frio parecia tornar-se mais intenso a cada minuto. Tenar ergueu-se e começou a recolher ramos secos de salva, apanhando os que havia por ali caídos e quebrando os maiores que cresciam tão nodosos e maciços, à sua escala, como os ramos dos carvalhos. Tinham ali parado perto do meio-dia, quando ainda estava quente e eles não podiam já prosseguir, tanto era o cansaço. Um par de zimbros atrofiados e a encosta ocidental da crista que tinham acabado de descer, haviam oferecido abrigo suficiente. Depois de beberem um pouco de água do cantil, tinham-se deitado e adormecido.

Havia bastantes ramos maiores por baixo das pequenas árvores e apanhou-os também. Abrindo uma cova num ângulo formado por rochas que saíam do solo, preparou uma fogueira que acendeu com o seu isqueiro de pederneira e aço. As folhas de salva e os pequenos galhos com que começou pegaram de imediato. Depois foi a vez de os ramos secos florirem em chamas rosadas, perfumadas de resina. Agora, em volta do fogo, parecia bem escuro e as estrelas surgiam de novo na amplidão tremenda do céu.

O estalar das chamas acordou o homem adormecido. Soergueu-se, passando as mãos pelo rosto manchado de pó, e finalmente levantou-se com movimentos pesados e aproximou-se do fogo.

— Não sei se… — hesitou, com voz ensonada.

— Tens razão — interpôs a rapariga —, mas não podemos passar aqui a noite sem uma fogueira. Faz demasiado frio. — E, um minuto depois, acrescentou: — A não ser que conheças alguma magia que nos mantenha quentes ou que oculte o fogo…

Ele sentou-se junto à fogueira, os pés quase dentro das chamas e com os braços em volta dos joelhos.

— Brrr — fez ele —, uma fogueira é muito melhor que qualquer magia. Eu pus um pouco de ilusão aqui em nossa volta e, se alguém por aí passar, talvez nos tome por troncos ou pedras. O que te parece? Achas que nos vão perseguir?

— Tenho medo que sim e, no entanto, não julgo que o façam. Ninguém, além de Kossil, sabia que tu lá estavas. Kossil e Manane. E eles estão mortos. Com certeza que ela estava na Mansão quando ruiu. Estava à espera ao pé do alçapão. E os outros, o resto, devem ter pensado que eu estava na Mansão ou nos Túmulos e que fui esmagada pelo terremoto.

Também ela rodeou os joelhos com os braços, teve um arrepio e continuou:

— Espero que os outros edifícios não tenham caído. Era difícil de ver do alto do monte, havia tanta poeira… Com certeza que não caíram todos os templos e todas as casas, a casa Grande onde dormiam todas as raparigas.

— Penso que não. Foram os Túmulos que se devoraram a si próprios. Vi o teto dourado de um templo qualquer quando nos estávamos a vir embora e ainda estava de pé. E havia figuras na base do monte, gente a correr.

— Que irão dizer, que irão pensar?… Pobre Penthé! Se calhar agora vai ter de ser a Grã-Sacerdotisa do Rei-Deus. E ela que era quem sempre se quis ir embora. Não eu. Talvez agora fuja.

Tenar sorriu. Havia nela uma alegria que nenhum pensamento ou temor podia ofuscar, aquela mesma alegria segura que crescera nela ao acordar na luz dourada. Abriu o seu bornal e dele retirou dois pequenos pães achatados. Por cima do lume, passou um a Gued, enquanto mordia o outro. O pão era duro, e azedo, e sabia muito bem.

Em silêncio, durante algum tempo, foram mastigando ambos o seu quinhão.

— A que distância estamos do mar?

— Levei duas noites e dois dias a cá chegar. Vamos levar mais tempo a ir.

— Eu sou forte — afirmou ela.

— Pois és. E corajosa. Mas o teu companheiro está cansado, — explicou ele com um sorriso. — Além de que não temos muito pão.

— E será que encontramos água?

— Amanhã, nas montanhas.

— Serás capaz de arranjar comida para nós? — perguntou ela algo vaga e timidamente.

— Para caçar, é preciso tempo. E armas.

— Eu queria dizer com… tu sabes, com feitiços.

— Posso chamar um coelho — respondeu ele, atiçando o lume com um pau retorcido de zimbro. — Agora, os coelhos estão todos a sair das suas tocas à nossa volta. A noite é o tempo deles. Eu podia chamar um pelo seu nome verdadeiro e ele viria. Mas eras capaz de apanhar, esfolar e assar um coelho que tivesses chamado assim? Talvez, se estivesses a morrer de fome. Mas acho que seria sempre um abuso de confiança.

— Pois. Mas eu pensei que pudesses simplesmente…

— Fazer aparecer uma ceia — concluiu ele. — Oh, sim, podia! Até em pratos de ouro, se quisesses. Mas isso é ilusão e, quando comemos ilusão, acabamos por ficar com mais fome antes. Alimenta tanto como comermos as nossas próprias palavras.

A rapariga viu-lhe os dentes brancos relampejarem por um instante à luz da fogueira.

— A tua magia é estranha — observou ela, com algo de uma dignidade entre iguais, Sacerdotisa dirigindo-se a Mago. — Parece só ser útil para assuntos de vulto.

Ele deitou mais lenha na fogueira que se alteou bruscamente num fogo de artifício de fagulhas e estalos cheirando a zimbro.

— É mesmo verdade que podes chamar um coelho? — perguntou Tenar, subitamente.

— Queres que eu chame um? Ela fez que sim com a cabeça.

Gued voltou costas ao lume e, suavemente, disse para a escuridão imensa, coalhada de estrelas:

— Kebbo… O kebbo…

Silêncio. Nem um som. Nem um movimento. Só que de repente, mesmo na orla da luz tremeluzente da fogueira, surgiu um olho redondo semelhante a um seixo de azeviche, muito perto do chão. Depois a curva de um dorso peludo. E uma orelha, longa, atenta, espetada.

A voz de Gued soou de novo. A orelha agitou-se, ganhou uma súbita companheira saída da sombra. Depois, quando o animalzinho se voltou, Tenar pôde vê-lo inteiramente por um momento, e ao pequeno, suave e ágil salto com que regressou, despreocupado, à sua atividade noturna.

— Ah! — fez ela, soltando a respiração. — Que lindo! — E logo perguntou: — Eu também podia fazer isso?

— Bom…

— É um segredo — disse ela imediatamente, retomando o ar digno.

— O nome do coelho é um segredo. Ou, pelo menos, não é coisa para se usar levianamente, sem motivo. Mas o que não é segredo, mas antes um dom, ou um mistério, vês tu, é o poder de chamar.

— Ah — disse ela —, esse tu tens. Eu sei!

E havia paixão na sua voz, sem sombra de troça que a ocultasse. Ele olhou-a, sem responder.

A verdade é que Gued estava ainda esgotado da sua luta contra Aqueles-que-não-têm-Nome. Gastara a sua força a deter o tremor dos túneis. Assim, embora tivesse ganho, pouco alento lhe restava para se alegrar. Em breve se voltou a enroscar, tão perto do lume quanto pôde, e adormeceu.

Tenar permaneceu sentada, alimentando o fogo e observando o deslumbramento das constelações de Inverno de horizonte a horizonte, até que a cabeça se lhe entonteceu de esplendor e silêncio, e ela se deixou também adormecer.

Acordaram ambos. O fogo apagara-se. As estrelas que ela vira estavam agora muito longe para lá das montanhas e outras tinham nascido a oriente. Foi o frio que os acordou, o frio seco da noite no deserto, e o vento que mais parecia uma lâmina de gelo. Um véu de nuvens vinha vindo sobre o céu, de sudoeste.