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— Nem sequer o cozinhas? Comeste isso vivo!

E não quis voltar a olhá-lo enquanto ele, envergonhado mas inabalável, continuou a abrir e a comer os moluscos, um por um.

Depois de acabar, voltou para dentro da gruta e foi até ao barco, que tinha a proa virada para fora e estava montado sobre vários troncos trazidos pelo mar, a defendê-lo do contato com a areia. Tenar olhara para o barco na noite anterior, desconfiada e sem o entender. Era muito maior do que pensara que os barcos fossem, três vezes a sua própria altura em comprimento. Estava cheio de objetos de que ela desconhecia o uso e parecia perigoso. A cada lado do nariz (que era como ela chamava à proa) tinha um olho pintado e, no seu sono inquieto, sentira constantemente que o barco a fitava.

Gued rebuscou por instantes entre o que havia lá dentro e regressou com qualquer coisa. Um bocado de pão duro, bem embrulhado para se manter seco. E ofereceu-lhe uma grande fatia.

— Não tenho fome.

Ele olhou-lhe o rosto taciturno.

Depois, voltou a embrulhar o pão como antes, pô-lo de lado e sentou-se à entrada da gruta.

— Faltam umas duas horas para a maré voltar a subir — disse — e então podemos partir. Tiveste uma noite pouco sossegada. Porque é que não dormes agora?

— Não tenho sono.

Ele não deu resposta. Deixou-se simplesmente ficar, de lado para ela e de pernas cruzadas, sob o arco escuro das rochas. O altear e mover-se do mar, com o seu brilho, ficava por detrás dele, tal como o via do fundo da gruta. Ele não se movia. Permanecia tão imóvel como as próprias rochas. A quietude libertava-se dele e espalhava-se, como os círculos formados por uma pedra lançada à água. O silêncio tornou-se, não a ausência da fala, mas uma coisa em si própria, como o silêncio do deserto.

Passado muito tempo, Tenar ergueu-se e veio até à entrada da gruta. Ele não se moveu. Desceu os olhos para o seu rosto. Era como se tivesse sido fundido em cobre — rígido, os olhos escuros não completamente cerrados, mas olhando para baixo, a boca serena.

Ele estava tão para além de Tenar como o oceano.

Onde estava ele agora, em que direção o espírito caminharia? Nunca poderia segui-lo.

Ele obrigara-a a segui-lo. Chamara-a pelo nome e ela viera rastejando à sua mão, tal como o pequeno coelho do deserto viera do escuro até ele. E agora que tinha o anel, agora que os Túmulos estavam em ruínas e a sua sacerdotisa renegada para sempre, agora não precisava dela e partia para onde não conseguia segui-lo. Não queria ficar com ela. Iludira-a e deixá-la-ia desolada e só.

Estendeu a mão e, com um único e célere gesto, arrancou-lhe do cinto a pequena adaga de aço que lhe dera. Ele moveu-se tanto como se teria movido uma estátua.

A lâmina da adaga não tinha mais de dez centímetros e era afiada num dos lados. Era a miniatura das facas usadas nos sacrifícios. Fazia parte dos adereços da Sacerdotisa dos Túmulos, a qual a deve trazer juntamente com a argola das chaves e um cinto de crina de cavalo, e ainda outros artigos, para alguns dos quais se desconhecia qualquer utilidade. Tenar nunca usara a adaga para nada, salvo que, numa das danças interpretadas durante a lua nova, tinha de a lançar ao ar e voltar a apanhá-la perante o Trono. Ela tinha gostado dessa dança. Era uma dança selvagem, sem outra música que não fosse o bater dos seus próprios pés. Várias vezes se cortara nos dedos ao ensaiá-la, até ter conseguido o jeito de agarrar o cabo sempre que a apanhava. A pequena lâmina era suficientemente afiada para cortar um dedo até ao osso, ou as artérias de uma garganta. Ela poderia ainda servir os seus Senhores, embora eles a tivessem traído e abandonado. Guiariam e impeliriam a sua mão naquela última ação de sombrio negrume. E aceitariam o sacrifício.

Inclinou-se sobre o homem, segurando a faca na mão direita, atrás da anca. Nesse momento, ele ergueu lentamente o rosto e olhou para ela. Tinha o aspecto de alguém que vem de muito longe e viu coisas terríveis. O seu rosto estava calmo mas cheio de dor. Ao dirigir o olhar para ela, parecendo vê-la cada vez mais claramente, a sua expressão amenizou-se. E, por fim, disse: «Tenar», como a desejar-lhe boas-vindas e ergueu a mão até tocar a pulseira de prata, perfurada e trabalhada, que cingia o pulso da rapariga. Fê-lo como se quisesse sossegar-se a si próprio, cheio de confiança. Não deu qualquer atenção à adaga na mão dela. Desviou a vista para longe, para as ondas que se alteavam sobre as rochas abaixo deles e, com esforço, disse:

— Está na altura… Na altura de partirmos.

Ao som da sua voz, a fúria abandonou-a. Sentiu medo.

— Vais deixá-los para trás de ti, Tenar. Agora, és livre — disse Gued, pondo-se de pé com súbito vigor. Espreguiçou-se e voltou a apertar o cinto à volta do manto, depois do que continuou: — Dá-me uma ajuda com o barco. Está em cima de troncos para poder rolar. Isso mesmo, empurra… Outra vez. Pronto, pronto, já chega. Agora prepara-te para saltar lá para dentro quando eu disser «salta». Este não é o melhor dos lugares para lançar um barco ao mar. Outra vez, agora. Isso! Salta lá para dentro!

E, saltando atrás dela, segurou-a quando a rapariga perdeu o equilíbrio, fê-la sentar no fundo do barco, firmou as pernas bem abertas e, lançando mão dos remos, impeliu o barco para o largo e por sobre as rochas, aproveitando o refluxo de uma onda, e depois até passar a ponta do cabo, rodeada do rugido e da espuma das vagas, e finalmente para o mar aberto.

Assim que se viram suficientemente longe das águas baixas, recolheu os remos e levantou o mastro. O barco parecia muito pequeno a Tenar, agora que estava dentro dele e com todo o oceano de fora.

Ele ergueu a vela. Todos os aprestos tinham um ar de coisas muito e arduamente usadas, embora a vela, de um vermelho baço, estivesse muito bem remendada e o barco tão limpo e arrumado quanto era possível. Eram como o dono. Tinham ido longe e não tinham sido tratados com delicadeza.

— Agora — disse ele —, agora estamos longe, agora estamos livres, partimos de vez, Tenar. Não sentes isso?

E ela sentia-o realmente. Uma escura mão deixara de ter sobre ela um domínio sobre o seu coração que durara toda a vida. Mas não sentia alegria, como sentira nas montanhas. Baixou a cabeça sobre os braços e chorou, e as suas faces estavam salgadas e molhadas. Chorava pelo desperdício dos seus anos passados na servidão de um mal inútil. Chorava de dor porque estava livre.

O que começara a aprender era o peso da liberdade. A liberdade é uma carga extrema, um fardo grande e estranho para que o espírito o aceite. Não é fácil. Não é um dom oferecido, mas uma escolha feita, e a escolha pode ser árdua. A estrada vai subindo em direção à luz. Mas o caminhante, sob a sua carga, pode nunca atingir o fim.

Gued deixou-a chorar e não lhe dirigiu quaisquer palavras de conforto. Nem quando ela parou de chorar e se ficou a olhar para trás, na direção da terra azul de Atuan, nem então falou. O seu rosto era impassível e atento, como se estivesse só. Tomava conta da vela e do leme, rápido e silencioso, olhando sempre em frente.

A certa altura, durante a tarde, Gued apontou para a direita do Sol, em cuja direção seguiam então.

— Além é Karego-At — indicou.

E Tenar, seguindo o seu gesto, viu o vulto distante de montes como nuvens, a grande ilha do Rei-Deus. Atuan já ficara fora de vista, para trás deles. O coração da rapariga estava pesado. O sol batia-lhe nos olhos como um martelo de ouro.

A ceia foi pão seco e peixe fumado, que coube pessimamente a Tenar, e água do barril de bordo que Gued enchera num ribeiro que desaguava no Cabo da Nuvem, na noite anterior. Rápida e fria, a noite de Inverno estendeu-se sobre o mar. Muito longe, para norte, viram por pouco tempo o minúsculo brilho de luzes e do fogo amarelado nas aldeias distantes na costa de Karego-At. Essas luzes desvaneceram-se numa névoa que se ergueu do oceano e ficaram sós, na noite sem estrelas, sobre as águas profundas.