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A rapariga enroscara-se à popa. Gued deitou-se à proa, com o barril da água a servir de almofada. O barco avançava firmemente, com a ondulação baixa batendo-lhe levemente o costado, embora o vento não passasse de uma leve brisa de sul. Ali, longe das costas rochosas, também o mar era silencioso. Apenas, ao tocar o barco, sussurrava um pouco.

— Se o vento sopra de sul — disse Tenar, sussurrando porque o mar sussurrava também —, o barco não navega para norte?

— Sim, a não ser que se vá em ziguezague. Mas eu pus o vento mágico na vela, para o Ocidente. Amanhã de manhã já devemos estar fora das águas karguianas. Então deixá-lo-ei navegar com o vento do mundo.

— E ele guia-se sozinho?

— Sim — replicou Gued, gravemente —, desde que se lhe dê as instruções necessárias. Não precisa de muitas. Já andou no alto mar, para lá da mais longínqua ilha da Estrema Leste. E já foi a Selidor, onde Erreth-Akbe morreu, no longínquo Ocidente. É um barco sábio e hábil o meu Vê-longe. Podes confiar nele.

Deitada no barco que se movia magicamente por sobre o grande abismo, a rapariga olhava para cima, para o escuro. Toda a sua vida olhara o escuro. Mas esta era uma solidão mais vasta, esta noite no oceano. Para ela, não havia fim. Não havia teto. Continuava, continuava, mesmo para além das estrelas. Não havia Poderes terrenos que a pudessem mover. Existira antes da luz e existiria depois. Existira antes da vida e existiria depois. Prosseguia imutável para além do mal.

No escuro, Tenar falou:

— A pequena ilha, onde te foi dado o talismã, é neste mar?

A voz dele, saindo da escuridão, respondeu:

— Sim. Algures. Para sul, talvez. Não consegui voltar a encontrá-la.

— Eu sei quem ela era, a velha que te deu o anel.

— Sabes?

— Contaram-me a história. Faz parte dos conhecimentos da Primeira Sacerdotisa. Thar contou-me, primeiro quando Kossil também estava junto de nós, depois, mais completa, quando estivemos só as duas. Foi a última vez que falou comigo antes de morrer. Houve uma casa nobre em Hupun que lutou contra a subida ao poder dos Grão-Sacerdotes em Áuabath. O fundador dessa casa era o Rei Thoreg e, entre os tesouros que deixou aos seus descendentes, havia o meio anel que Erreth-Akbe lhe dera.

— É isso realmente que se conta n’O Feito de Erreth-Akbe. Diz… na tua língua, diz: «Quando o anel foi quebrado, metade ficou na mão do Grão-Sacerdote Intáthin e metade na mão do herói. E o Grão-Sacerdote enviou a metade quebrada para o Sem-Nome, para o Antiquíssimo da Terra em Atuan e desceu à escuridão, aos lugares perdidos. Mas Erreth-Akbe pôs a metade quebrada nas mãos da donzela Tiarath, filha do rei sage, dizendo: “Que permaneça na luz, no dote da donzela, que continue nesta terra até que as metades sejam reunidas.” Assim falou o herói antes de partir para ocidente.»

— E assim deve ter passado de filha para filha naquela casa, ao longo de todos os anos. Não estava perdida a metade, como a tua gente pensou. Mas quando os Grão-Sacerdotes se fizeram a si próprios Reis-Sacerdotes e depois, quando os Reis-Sacerdotes criaram o Império e começaram a chamar a si próprios Reis-Deuses, durante todo esse tempo a casa de Thoreg ia-se tornando cada vez mais pobre e mais fraca. E por fim, segundo Thar me contou, só restavam dois seres da linhagem de Thoreg, crianças ainda, um rapaz e uma rapariga. O Rei-Deus em Áuabath era então o pai daquele que governa agora. Mandou roubar as crianças do seu palácio em Hupun. Havia a profecia de que um dos descendentes de Thoreg de Hupun havia de provocar um dia a queda do Império e isso assustou-o. Mandou então raptar as duas crianças e levá-las para uma ilha deserta, algures no meio do mar, e que ali fossem deixadas sem nada para além das roupas que usassem e um pouco de comida. Temia matá-las pelo punhal, pela corda ou pelo veneno. Eram de sangue real e o assassinato de reis acarreta uma maldição, mesmo sobre os deuses. Os seus nomes eram Ensar e Anthil. Foi Anthil quem te deu a metade do anel quebrado.

Gued permaneceu silencioso por longo tempo. Por fim, disse:

— E finalmente a história fica completa, tal como o anel ficou completo. Mas é uma história cruel, Tenar. As crianças, aquela ilha, os dois velhos que eu vi… Quase não sabiam fala humana alguma.

— Queria pedir-te uma coisa.

— Pede.

— Eu não quero ir para as Terras Interiores, para Havnor. Não pertenço aí, a essas grandes cidades e entre gente desconhecida. Não pertenço a terra nenhuma. Traí o meu próprio povo. Não tenho povo. E fiz uma coisa muito má. Põe-me sozinha numa ilha, como os filhos do rei foram deixados, numa ilha isolada onde não haja gente, onde não haja ninguém. Deixa-me e leva o anel para Havnor. É teu, não meu. Não tem nada a ver comigo. E a tua gente também não. Deixa-me sozinha!

Lentamente, gradualmente, mas mesmo assim sobressaltando-a, uma luz apareceu como o nascer da Lua no negrume à sua frente, a luz de feitiço que surgia quando ele ordenava. Aderia à extremidade do bordão que ele segurava na vertical, sentado à proa, virado para ela. Iluminava a base da vela e a amurada do barco e as tábuas e o rosto do homem com um clarão prateado. Gued olhava diretamente para ela.

— Que mal fizeste tu, Tenar?

— Ordenei que três homens fossem encerrados numa câmara, por baixo do Trono, e deixados morrer à fome. Morreram de fome e de sede. Morreram e estão lá enterrados, no Subtúmulo. As Pedras Tumulares caíram sobre as suas sepulturas.

E a rapariga interrompeu-se.

— Há mais ainda?

— Manane.

— Essa morte pesa sobre a minha alma.

— Não. Ele morreu porque me amava e foi fiel. Pensou que estava a proteger-me. Foi ele que susteve a espada acima do meu pescoço. Quando eu era pequena, ele era bom para mim… quando eu chorava…

Voltou a silenciar-se porque as lágrimas lhe queriam chegar aos olhos, violentas. E contudo, ela não iria chorar. As suas mãos estavam apertadas nas dobras negras do seu vestido.

— Nunca fui boa para ele — continuou. — Não irei para Havnor. Não irei contigo. Encontra alguma ilha onde ninguém vá, põe-me lá e deixa-me. O mal tem de ser pago. Eu não sou livre.

A luz suave, acinzentada pela névoa marítima, brilhava no meio deles.

— Ouve, Tenar. Atende-me. Tu eras o receptáculo do mal. O mal foi deitado fora. Acabou. Está enterrado no seu próprio túmulo. Tu não tinhas sido feita para a crueldade e para a sombra. Tu tinhas sido feita para guardar a luz, tal como uma lâmpada acesa guarda e dá a sua luz. Eu encontrei a lâmpada por acender. Não vou deixá-la numa qualquer ilha deserta, como uma coisa que se achou e deitou fora. Levar-te-ei até Havnor e direi aos príncipes de Terramar: «Vejam! No lugar da escuridão, encontrei a luz, o espírito dela. Através dela, um mal antigo foi reduzido a nada. Através dela, pude sair da sepultura. Através dela, o que estava quebrado foi tornado inteiro e, onde havia ódio, haverá paz.»

— Não irei — insistiu Tenar numa agonia. — Não posso. Não é verdade!

— E depois disso — prosseguiu ele, suavemente —, levar-te-ei para longe dos príncipes e dos ricos senhores, porque é verdade que não há ali lugar para ti. És demasiado jovem e demasiado sábia. Levar-te-ei para a minha própria terra, para Gont, onde nasci, até junto do meu velho mestre Óguion. Ele é um velho agora, um muito grande Mago e um homem de coração paciente. Chamam-lhe «o Silencioso». Vive numa pequena casa nas grandes falésias de Re Albi, muito acima do mar. Tem algumas cabras e uma pequena horta. No Outono, vagueia por toda a ilha, sozinho, nas florestas ou nas encostas das montanhas, através dos vales dos rios. Em tempos vivi ali com ele, era eu mais novo que tu és agora. Não fiquei muito tempo, não tive o bom senso de ficar. Parti em busca do mal e não há dúvida de que o encontrei… Mas tu vens a fugir ao mal, em busca de liberdade. Em busca de silêncio por algum tempo, até que encontres o teu próprio caminho. Lá, junto dele, encontrarás bondade e silêncio, Tenar. Aí a lâmpada poderá, por algum tempo, arder ao abrigo do vento. Farás isso?