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— A mim não — retorquiu Arha ferozmente. — Eu nem olhava para eles. Esses bruxos malditos, nojentos. Como é que se atreveram a navegar tão perto da Terra Sagrada?

— Ora, deixá-los. O Rei-Deus há de vencê-los um dia destes e fazê-los todos escravos. Mas quem me dera ver outra vez o mar. Costumava haver polvos pequeninos nas poças que a maré deixava e, se a gente lhes gritava «BUUU!», ficavam todos brancos. Mas, olha. Lá vem o velho Manane à tua procura.

O guarda e servo de Arha aproximava-se lentamente, caminhando junto à face interna do muro. Inclinava-se de vez em quando para apanhar uma cebola brava, de que tinha já um grande molho, depois endireitava-se e deitava uma mirada em volta com os seus pequenos olhos de um castanho baço. Engordara com o passar dos anos e a sua pele amarelada e sem pêlos brilhava ao sol.

— Deixa-te escorregar um bocado para o lado dos homens — ciciou Arha.

E ambas as raparigas se saracotearam como lagartos pelo lado exterior do muro, até ficarem suspensas logo abaixo do topo, invisíveis do lado interior. Ouviram aproximar-se os lentos passos de Manane.

— Huuuh! Huuuh! Cara de batata! — cantarolou Arha num sussurro de troça, tão leve como o vento entre as ervas.

Os passos pesados interromperam-se.

— Quem está aí? — perguntou uma voz insegura. — Pequenina? Arha?

Silêncio.

Manane prosseguiu caminho.

— Huuuh! Huuuh! Cara de batata!

— Huuuh! Huuuh! Barriga de batata! — segredou Penthé, imitando a outra, e logo soltou uma espécie de ganido a tentar conter o riso.

— Está aí alguém?

Silêncio.

— Ora, pois, pois, pois — suspirou o eunuco e, na sua passada lenta, seguiu em frente.

Depois de ele ter desaparecido para lá da curva da encosta, as raparigas voltaram a empoleirar-se no muro. Penthé estava toda afogueada do suor e do riso, mas Arha tinha um ar furibundo.

— Estúpido do carneiro velho, sempre atrás de mim por todo o lado.

— Tem de ser — atalhou Penthé sensatamente. — O trabalho dele é tomar conta de ti.

— Aqueles que eu sirvo tomam conta de mim. É a eles que tenho de agradar. Não preciso de agradar a mais ninguém. Essas velhas, esses semi-homens, toda essa gente devia era deixar-me em paz. Eu sou a Única Sacerdotisa!

Penthé olhou fixamente a outra rapariga.

— Oh — exclamou ela baixinho —, eu sei que és, Arha…

— Pois então deviam deixar-me. E não passarem a vida a dar-me ordens!

Penthé permaneceu em silêncio durante um pedaço, porém suspirou, balançando as pernas gorduchas e olhando para as terras vastas e descoradas lá em baixo, que se iam erguendo lentamente, lentamente, até um alto, impreciso e imenso horizonte.

— Em breve vais ser tu a dar as ordens, bem sabes — asseverou finalmente, em tom calmo. — Daqui a dois anos deixamos de ser crianças. Teremos catorze anos. Eu vou para o templo do Rei-Deus e, para mim, as coisas hão de continuar a ser quase as mesmas. Mas tu serás realmente a Grã-Sacerdotisa. E até Kossil e Thar terão de te obedecer.

A Devorada nada disse. A sua expressão era obstinada, os seus olhos, sob as sobrancelhas negras, refletiam a luz do céu, brilhando palidamente.

— Devíamos voltar — sugeriu Penthé.

— Não.

— Mas a mestra tecelã é capaz de dizer a Thar. E está quase na hora dos Nove Cânticos.

— Eu fico aqui. E tu ficas também.

— A ti, não te vão castigar, mas a mim, sim — comentou Penthé com o seu ar tranqüilo. Mas Arha não deu resposta. Penthé suspirou e deixou-se estar. O Sol ia mergulhando na névoa, bem acima das planícies. Lá longe, na extensa e gradual inclinação das terras, os chocalhos das ovelhas tiniam levemente, os cordeiros baliam. O vento da Primavera soprava em ligeiras e secas lufadas, trazendo um aroma suave.

Os Nove Cânticos estavam quase a terminar quando as duas raparigas regressaram. Mébeth vira-as sentadas no Muro dos Homens e fora dar parte à sua superiora, Kossil, Grã-Sacerdotisa do Rei-Deus.

Kossil era grave de movimentos e de semblante. Foi sem qualquer expressão no rosto ou na voz que se dirigiu às duas raparigas, dizendo que a seguissem. Com a sacerdotisa à cabeça, atravessaram as salas de pedra da Casa Grande, saíram pela porta da frente e subiram a pequena elevação até ao Templo de Atuáh e Ualuáh. Aí falou com a Grã-Sacerdotisa daquele templo, Thar, alta, seca e magra como uma tíbia de corça. Dirigindo-se a Penthé, Kossil ordenou:

— Despe o vestido.

Açoitou a rapariga com um molho de juncos que lhe cortaram ligeiramente a pele. Penthé suportou aquilo pacientemente, com lágrimas silenciosas. Foi mandada de volta para a sala da tecelagem sem ceia e, no dia seguinte, também não iria comer nada.

— E se mais alguma vez fores apanhada a subir ao Muro dos Homens — avisou Kossil —, vão acontecer-te coisas muito piores do que isto. Percebeste, Penthé?

A voz de Kossil era suave mas não amigável. Penthé respondeu «Sim!» e escapou-se dali, encolhendo-se e estremecendo sempre que o tecido grosseiro da roupa lhe roçava pelos cortes nas costas.

Arha permanecera ao lado de Thar, assistindo ao castigo, e agora observava Kossil, enquanto esta limpava os juncos. Thar disse-lhe:

— Não é próprio que te vejam a trepar a muros e a fazer corridas com as outras raparigas. Tu és Arha.

Carrancuda, a rapariga não deu resposta.

— É melhor que te limites a fazer apenas aquilo que te é necessário. Tu és Arha.

Por um momento, a rapariga ergueu os olhos para o rosto de Thar, depois para o de Kossil, e havia neles um abismo de ódio ou raiva que era terrível de ver. Mas a esguia sacerdotisa não deu mostras de inquietação. Em vez disso, insistiu, inclinando-se um pouco para a frente e quase num sussurro:

— Tu és Ahra. Nada sobrou. Tudo foi comido.

— Tudo foi comido — repetiu a rapariga, tal como repetira diariamente, em todos os dias da sua vida desde os seis anos.

Thar inclinou levemente a cabeça, no que foi imitada por Kossil enquanto punha de lado o açoite. A rapariga não correspondeu à mesura mas voltou as costas submissamente e saiu.

Depois da ceia de batatas e cebolas novas, ingerida em silêncio no refeitório estreito e escuro, depois de entoados os cânticos da noite, apostas as palavras sagradas sobre as portas, cumprido o breve Ritual dos Sem-Nome, estavam acabadas as tarefas do dia. As raparigas podiam agora subir para os dormitórios e fazer jogos com dados e pauzinhos, durante o tempo que durasse a única vela de medula de junco, e depois segredar no escuro de cama para cama. Arha pôs-se a caminho, atravessando os pátios e vertentes do Lugar, tal como fazia todas as noites, até à Casa Pequena onde dormia sozinha.

O vento noturno soprava suave. As estrelas do céu primaveril brilhavam em cachos, como tapetes de margaridas nos prados da Primavera, como o reluzir da luz no mar de Abril. Mas a rapariga não tinha qualquer memória de prados ou do mar. Não olhou para cima.

— Olá, pequenina!

— Manane — pronunciou ela com indiferença.