Num arrastar de pés, a grande sombra veio pôr-se ao seu lado, a luz das estrelas a refletir-se na cabeçorra calva.
— Foste castigada?
— Eu não posso ser castigada.
— Não… É tão…
— Elas não me podem castigar. Não se atrevem.
Manane ficou parado com as grandes mãos pendentes, um vulto indistinto e volumoso. A rapariga sentiu o aroma de cebolas bravas, e o cheiro a suor e a salva das suas velhas roupagens pretas, rotas na bainha e demasiado curtas para ele.
— Elas não me podem tocar. Eu sou Arha — continuou ela numa voz aguda e cheia de raiva. Depois rebentou em lágrimas.
As grandes, as expectantes mãos ergueram-se e puxaram-na para junto dele, seguraram-na suavemente, afagaram-lhe o cabelo entrançado.
— Vá, vá. Meu favinho de mel, minha pequenina…
Arha ouvia o murmúrio rouco ecoar profundamente no peito dele. As suas lágrimas em breve se estancaram, mas continuou agarrada a Manane, como se não pudesse suster-se de pé.
— Minha pobrezinha — sussurrou o eunuco e, erguendo a criança nos braços, levou-a até à porta da casa onde ela dormia sozinha. Aí, colocou-a no chão.
— Já estás bem, agora, pequenina?
Ela acenou com a cabeça que sim, voltou-se e entrou no negrume da casa.
3. OS PRISIONEIROS
Os passos de Kossil soaram ao longo do pátio de entrada da Casa Pequena, uniformes e deliberados. O seu vulto alto e pesado encheu a entrada do quarto, reduziu-se quando a sacerdotisa se inclinou, dobrando um joelho a tocar o chão, agigantou-se quando ela se endireitou completamente.
— Senhora.
— O que foi, Kossil?
— Até agora, foi-me permitido tomar a meu cargo certos assuntos respeitantes ao Domínio d’Aqueles-que-não-têm-Nome. Se for teu desejo, é agora tempo que aprendas, vejas e te ocupes desses assuntos que não recordaste ainda nesta vida.
A rapariga tinha estado sentada no seu quarto sem janelas, supostamente a meditar, mas na realidade sem fazer nada e em quase nada pensando. Levou algum tempo antes que a expressão fixa, soturna e altiva do seu rosto se modificasse. Porém, modificou-se, embora ela tentasse ocultá-lo. Num tom algo dissimulado, perguntou:
— O Labirinto?
— Não, não entraremos no Labirinto. Mas vai ser necessário atravessar o Subtúmulo.
Havia na voz de Kossil um tom que talvez fosse de medo, ou um medo fingido destinado a atemorizar Arha. A rapariga ergueu-se sem pressa e disse indiferentemente:
— Muito bem!
Mas no seu coração, enquanto seguia a poderosa figura da sacerdotisa do Reino-Deus, exultava: «Por fim! Por fim! Vou finalmente ver o meu próprio domínio!»
Tinha quinze anos. Já havia um ano que adquirira o estatuto de mulher e, ao mesmo tempo, fora empossada de todos os poderes como Única Sacerdotisa dos Túmulos de Atuan, a mais alta de todas as grã-sacerdotisas das Terras de Kargard, alguém a quem nem o próprio Rei-Deus podia dar ordens. Agora todos dobravam o joelho diante dela, mesmo as severas Thar e Kossil. Todos se lhe dirigiam com elaborada deferência. Mas nada mudara. Nada acontecia. Passadas as cerimônias da sua consagração, os dias continuaram a decorrer como sempre tinham decorrido. Havia lã para ser fiada, pano negro para ser tecido, farinha para ser moída, ritos a ser cumpridos. Os Nove Cânticos tinham de ser entoados todas as noites, as portas abençoadas, as Pedras alimentadas com sangue de cabra duas vezes por ano, as danças da lua nova dançadas perante o Trono Vazio. E assim decorrera todo um ano, tal como haviam decorrido os anos anteriores, e ela perguntava-se se todos os anos da sua vida iriam também passar assim.
O tédio chegava por vezes a ser tão grande dentro dela que o sentia como um terror que lhe apertava a garganta. Havia não muito tempo fora levada a falar disso. Tinha de falar, pensara, ou acabaria por endoidecer. Foi com Manane que se abriu. O orgulho impedia-a de se confiar às outras raparigas e a cautela, de se confessar às mulheres mais velhas, mas Manane era um nada, um velho carneiro fiel. Não importava o que lhe dissesse. E, para sua surpresa, Manane tivera uma resposta para lhe dar.
— Há muito tempo — disse ele —, sabes, minha pequenina, antes de os nossos quatro territórios estarem ligados a formar um império, antes de haver um Rei-Deus a governar-nos a todos, havia muitos pequenos reis e príncipes e chefes de clã. Andavam sempre em querelas uns com os outros. E vinham até aqui para resolver as suas questões. Era assim que era, vinham da nossa terra, Atuan, de Karego-At, de Atnini e até de Hur-at-Hur, todos os chefes e príncipes com os seus servos e os seus exércitos. E perguntavam-te o que fazer. E tu apresentar-te-ias perante o Trono Vazio, a dar-lhes o conselho d’Aqueles-que-não-têm-Nome. Bem, isso era há muito. Ao fim de um certo tempo, os Reis-Sacerdotes chegaram a governar sobre toda Karego-At e pouco depois estenderam o seu poder a Atuan. E agora, há quatro ou cinco vidas de homem, os Reis-Deuses têm governado os territórios em conjunto, fazendo deles um império. E assim se mudaram as coisas. O Rei-Deus pode destituir os chefes rebeldes e ele próprio resolve todas as questões. E, estás tu a ver, sendo um deus, não precisa de consultar muitas vezes Aqueles-que-não-têm-Nome.
Arha interrompeu-o para meditar no que ouvira. Ali, naquela terra desértica, à sombra das Pedras imutáveis, levando uma vida que decorrera sempre do mesmo modo desde o princípio do mundo, o tempo não tinha grande significado. Não estava habituada a pensar em coisas a mudar, em velhos costumes a morrer e outros novos a surgir. Não lhe pareceu agradável olhar as coisas a essa luz. Enrugando a testa, disse:
— Os poderes do Rei-Deus são muito menores que os d’Aqueles que eu sirvo.
— Decerto… Decerto… Mas ninguém se vai pôr a dizer isso a um deus, meu favinho de mel. Nem à sua sacerdotisa.
E perscrutando-lhe os olhos pequeninos, castanhos e brilhantes, Arha pensou em Kossil, Grã-Sacerdotisa do Rei-Deus, a quem ela temera logo desde a primeira vez que pusera pé no Lugar. E entendeu o que ele queria dizer.
— Mas o Rei-Deus e as suas gentes estão a negligenciar o culto dos Túmulos. Ninguém aqui vem.
— Bom, ele envia prisioneiros para serem aqui sacrificados. Aí não há negligência. Nem nas dádivas devidas a Aqueles-que-não-têm-Nome.
— Dádivas! O seu templo é pintado de novo todos os anos, há um quintal[1] de ouro no altar, as lâmpadas queimam essência de rosas! E olha-me para a Mansão do Trono: buracos no teto, a cúpula a abrir rachas, as paredes cheias de ratos e mochos e morcegos… Mas mesmo assim há de durar mais que o Rei-Deus e todos os seus templos, e que todos os reis que vierem depois dele. Existia antes deles e, quando tiverem desaparecido, continuará a existir. Porque é o centro das coisas.
— E o centro das coisas.
— E há riquezas. Thar fala-me delas às vezes. Suficientes para encher dez vezes o templo do Rei-Deus. Ouro e troféus oferecidos há eras atrás, cem gerações, sabe-se lá quanto tempo. Estão fechadas nos fossos e subterrâneos, lá por baixo. Ainda não me levaram lá, deixam-me constantemente à espera. Mas eu sei como é. Há câmaras sob a Mansão do Trono, sob todo o Lugar, aqui mesmo debaixo do sítio onde estamos. Há um grande emaranhado de túneis, um Labirinto. É como uma grande cidade na escuridão, debaixo do monte. Cheia de ouro, e de espadas dos antigos heróis, e velhas coroas e ossos e anos e silêncio.
Ela falava como num transe, em êxtase. Manane fitava-a. O seu rosto pétreo nunca exprimia muito mais que uma tímida e obstinada tristeza, mas estava agora mais triste que o habitual.
— Bom — acabou por dizer —, e tu és senhora de tudo isso. Do silêncio e da escuridão.
— Sou. Mas elas não me deixam ver nada, só as salas acima do solo, por trás do Trono. Nem sequer me mostraram as entradas para os lugares subterrâneos. Só resmungam umas palavras acerca delas, de vez em quando. Estão a manter longe de mim o meu próprio domínio! Porque me hão de fazer esperar, esperar constantemente?