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— Tu és jovem. E talvez — aventou Manane na sua aguda voz roufenha —, talvez tenham medo, pequenina. Ao fim e ao cabo, não é o domínio delas, é o teu. Estão em perigo quando lá entram. Não há mortal que não tema Aqueles-que-não-têm-Nome.

Arha nada disse mas os seus olhos relampejaram. Uma vez mais, Manane mostrara-lhe uma nova maneira de ver as coisas. Thar e Kossil sempre lhe tinham parecido tão formidandas, tão frias, tão fortes, que nunca havia sequer imaginado que pudessem ter medo. E no entanto Manane tinha razão. Elas temiam aqueles lugares, aqueles poderes de que Arha fazia parte, a que pertencia. Elas temiam entrar nos lugares de escuridão, não fossem ser devoradas.

E agora, ao descer com Kossil os degraus da Casa Pequena, ao subir o íngreme caminho serpenteante que conduzia à Mansão do Trono, recordava aquela conversa com Manane e exultava de novo. Onde quer que a levassem, o que quer que lhe mostrassem, não teria medo. Saberia encontrar o seu caminho.

Permanecendo ligeiramente atrás dela no caminho, Kossil falou:

— Um dos deveres da minha senhora, como é de seu conhecimento, é o sacrifício de certos prisioneiros, criminosos de ascendência nobre, que por sacrilégio ou traição pecaram contra o nosso amo, o Rei-Deus.

— Ou contra Aqueles-que-não-têm-Nome — contrapôs Arha.

— Verdade. Ora, não é próprio que a Devorada, quando ainda criança, cumpra esse dever. Mas a minha senhora não é já uma criança. Há prisioneiros na Sala das Correntes, enviados dois meses atrás por graça do nosso senhor, o Rei-Deus, da sua cidade de Áuabath.

— Não sabia que tinham chegado prisioneiros. Porque é que não fui informada?

— Os prisioneiros são trazidos durante a noite, e secretamente, tal como foi prescrito desde sempre nos rituais dos Túmulos. Pelo caminho secreto que a minha senhora seguirá, se tomar pelo carreiro que corre ao longo do muro.

Arha saiu do trilho para seguir o grande muro de pedra que limitava os Túmulos por trás da sala abobadada. As rochas de que era construído eram maciças. A mais pequena de entre elas pesava mais que um homem e as maiores eram tão grandes como carroções. Embora não fossem afeiçoadas, estavam cuidadosamente dispostas e interligadas. No entanto, nalgum pontos, o cimo do muro dera de si e as rochas jaziam num amontoado informe. Só uma enorme extensão de tempo pudera causar aquilo, os séculos de dias em brasa e noites glaciais do deserto, os movimentos milenares, imperceptíveis, das próprias colinas.

— É muito fácil escalar o Muro dos Túmulos — comentou Arha, enquanto caminhavam ambas junto da construção.

— Não temos homens que cheguem para o voltar a erigir, — replicou Kossil.

— Mas temos homens que cheguem para o guardar.

— Apenas escravos. Não são de confiança.

— São, se tiverem medo. Basta que a pena seja a mesma para eles que para qualquer estranho a quem eles permitam pôr o pé no terreno sagrado dentro do muro.

— Que pena é essa?

Mas Kossil não fazia a pergunta para saber a resposta. Ela própria a tinha ensinado a Arha, muito tempo atrás.

— Ser decapitado perante o Trono.

— É desejo da minha senhora que seja postado um guarda sobre o Muro dos Túmulos?

— É — respondeu a rapariga.

Dentro das suas longas mangas negras os dedos enclavinharam-se de júbilo. Sabia que Kossil não queria ceder um escravo para aquele dever de vigiar o muro e, na verdade, era uma tarefa inútil, pois que estranhos ali vinham alguma vez? Não era provável que um homem se aproximasse, por acaso ou voluntariamente, nem que fosse uma milha do Lugar sem ser visto. E de certeza que nunca chegaria próximo sequer dos Túmulos. Mas um guarda era uma honra que se lhes devia e Kossil dificilmente poderia argumentar contra isso. Tinha de obedecer a Arha.

— Aqui — indicou a sua voz seca e fria.

Arha parou. Muitas vezes palmilhara aquele caminho ao redor do Muro dos Túmulos c conhecia-o, tal como conhecia cada centímetro do Lugar, cada pedra e espinheiro e cardo. A grande parede de pedra erguia-se para a sua esquerda, até três vezes a sua altura. Para a direita, a colina descia em talude até um vale pouco profundo e árido, que logo se erguia de novo em direção ao sopé da cordilheira ocidental. Olhou todo o espaço ao seu redor e nada descortinou que não tivesse já visto antes.

— Sob as rochas vermelhas, senhora.

Poucos metros adiante, um afloramento de lava vermelha formava uma escada ou pequena escarpa na elevação de terreno. Logo que se aproximou e ficou ao mesmo nível, de frente para as rochas, Arha percebeu que formavam uma espécie de grosseiro enquadramento de porta, com quatro pés de altura.

— O que é preciso fazer?

Aprendera havia muito que, nos lugares sagrados, de nada serve tentar abrir uma porta antes de se saber como a devemos abrir.

— A minha senhora tem todas as chaves para os lugares sombrios.

Desde os ritos da sua mudança de idade, Arha passara a usar um anel de ferro suspenso do cinto e de onde pendiam uma pequena adaga e treze chaves, umas compridas e pesadas, outras tão pequenas como anzóis. Arha ergueu o anel e abriu as chaves em leque.

— Essa — disse Kossil, apontando-a, e logo pousou o grosso indicador numa fenda entre as superfícies de duas rochas vermelhas, cavadas.

A chave, uma comprida haste de ferro com dois palhetões ornamentados, entrou na fenda. Arha fê-la girar para a esquerda, usando as duas mãos porque parecia estar um pouco perra. No entanto rodou suavemente.

— Agora?

— Juntas…

E, unindo forças, empurraram a grosseira face da rocha à esquerda da fechadura. Pesadamente, mas sem prender e com muito pouco ruído, uma seção irregular de rocha vermelha moveu-se para dentro até se abrir uma estreita frincha. Lá dentro tudo era escuridão.

Arha curvou-se para a frente e entrou.

Kossil, sendo uma mulher corpulenta e com pesadas roupagens, teve de se comprimir para passar através da estreita abertura. Logo que entrou, encostou as costas à porta e, com um esforço, empurrou-a até se fechar.

A escuridão era absoluta. Não havia luz alguma. O negrume parecia comprimir-se como um feltro molhado contra os olhos abertos.

Inclinaram-se as duas até quase se agacharem, pois o lugar onde estavam não chegava a quatro pés de altura e era tão estreito que as mãos de Arha, ao apalparem, logo tocaram em rocha úmida para ambos os lados.

— Trouxeste alguma luz? — sussurrou ela, como é costume fazer-se no escuro.

Atrás dela, Kossil replicou:

— Não trouxe luz nenhuma.

Kossil baixara também a voz, mas havia nela um tom estranho, como se sorrisse. E Kossil nunca sorria. Arha sentiu um baque no coração. O sangue pulsava-lhe na garganta. Para si própria, disse ferozmente: «Este é o meu lugar, pertenço aqui, não terei medo!»

Mas em voz alta nada disse. Pôs-se a andar em frente. Era o único caminho a seguir e conduzia para o interior da colina e para baixo.

Kossil seguiu-a, respirando pesadamente, com as vestes a roçar e a raspar contra rocha e terra.

E de súbito o teto elevou-se. Arha podia pôr-se direita e, ao estender os braços para o lado, não sentiu as paredes. O ar, que cheirara a fechado e a terra, tocou-lhe o rosto com uma frescura mais úmida e os ligeiríssimos movimentos que nele sentia deram-lhe a noção de um grande espaço. Arha deu alguns passos cuidadosos em frente, para dentro daquele absoluto negrume. Um seixo, escorregando sob a sandália que calçava, foi embater noutro seixo e o leve som acordou ecos, muitos ecos, mínimos, remotos, mais remotos ainda. A caverna devia ser imensa, alta e larga, mas não vazia. Algo na sua escuridão, as superfícies de objetos invisíveis ou de paredes interiores, quebrava o eco em mil fragmentos.