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1 Proposições iniciais

Heresias, na sua origem, eram divergências que se estabeleceram no próprio seio do cristianismo por oposição a um pensamento eclesiástico que tivera sucesso em se fazer considerar “ortodoxo”. A palavra “ortodoxia”, neste caso, estará em referência à ideia de um “caminho reto” associado a um pensamento fundador original, no caso do cristianismo a um pretenso pensamento que derivaria do Cristo e de seus apóstolos, bem como dos textos bíblicos naquelas de suas interpretações que se queriam considerar as únicas corretas. Desde já, será preciso pontuar que, seja no âmbito das heresias do mundo antigo e da Alta Idade Média, ainda marcadas por serem essencialmente divergências de nível teológico, seja no âmbito das heresias que surgem na Idade Média Central e posteriormente na Baixa Idade Média, estas últimas por vezes já prenunciando a Reforma Protestante do século XVI, a verdade é que em todos estes casos “hereges” e “ortodoxos” – conforme sejam chamados de acordo com o jogo dos poderes de nomear – sempre acreditaram tanto uns como outros serem os verdadeiros defensores da verdade da fé. Ou, para falar nos termos propostos por Duby na conferência de encerramento do congresso de historiadores sobre “Heresias e Sociedades” realizado em Rougement, em 1968, a questão é que “todo herético tornou-se tal por decisão das autoridades ortodoxas. Ele é antes de tudo um herético aos olhos dos outros” (DUBY, 1990: 177). O reconhecimento deste ponto, conforme veremos, deve constituir um primeiro cuidado para o estudo das heresias como fenômeno histórico e social.

Dentro desta perspectiva, para considerar de início a história mais remota das heresias, vale lembrar que a partir do final do século II as heresias começam a ser catalogadas por aqueles que conseguiram fazer prevalecer seus posicionamentos nestes séculos iniciais de formação da Igreja Cristã – tanto na sua vertente oriental como ocidental. No século V, já teremos um texto importante de Santo Agostinho denominado De heresibus, que a certa altura lista nada mais nada menos que 88 heresias, transmitindo esta listagem para períodos mais avançados da Idade Média.

Do mesmo modo, Santo Isidoro enumera nas Etimologias, escritas no século VII, 70 heresias. Isto nos dá uma ideia do gesto de arbitrariedade que de algum modo pauta a intenção de classificar pensamentos heréticos que se desviam da “ortodoxia”, isto é, do pensamento que pretensamente descenderia em linha reta do pensamento de Cristo ou dos primeiros Padres da Igreja conforme as autoridades eclesiásticas dominantes.

À parte estas origens, deve-se ter em vista que o significado da palavra “heresia” foi adquirindo novos matizes com os desenvolvimentos medievais. Háiresis, em grego, significava “escolha”, “partido tomado”, mas também o “ato de pegar”. Para os teólogos, uma metáfora se produzia aqui em alusão ao gesto de Adão e Eva que, segundo o Antigo Testamento, estenderam a mão para “pegar” o fruto proibido e com isso inauguraram um “pensamento discordante” em relação a Deus. Heresia corresponderia então, para os primeiros Padres da Igreja e seus dignitários posteriores, a esta visão particular e discordante. Assim, de uma palavra que no grego original poderia significar a “acentuação de um aspecto particular da verdade”, passava-se no cristianismo primitivo a um sentido em que “heresia” se apresentava como negação da verdade original e aceita, ou como pregação de um evangelho diferente daquele que era divulgado pelas verdades apostólicas (FRANGIOTTI, 1995: 6).

Nesta mesma direção, para Inácio de Antioquia, morto em Roma no início do século II – e também para Ireneu de Lyon (130-202), cuja principal obra foi um tratado Contra as heresias –, a palavra “heresia” refere-se aos “falsos profetas, falsos mestres que introduzem no seio da comunidade doutrinas danosas, dúbias ou que não se compaginam com a doutrina dos apóstolos” (INÁCIO DE ANTIOQUIA, Ad Trallianos 6,1; IRINEU DE LYON, Adv. Haer, III, 12, 11-13). O herético é, portanto, não apenas aquele que está no erro, mas também aquele que induz ao erro.

Isidoro de Sevilha – escrevendo em um mundo no qual o cristianismo busca se afirmar simultaneamente contra o inimigo externo, o paganismo, e o inimigo interno, o herege – distingue claramente a ideia de heresia do posicionamento pagão ao afirmar, em Etimologias, que o herético é não apenas aquele que se encontra no erro, mas que nele se obstina. Ou seja, o herético é o desviante que conhece a fé cristã, e fala de seu interior – e não o pagão que ainda não foi cristianizado – e que, uma vez alertado ou desautorizado pela Igreja em seu desvio em relação à verdadeira fé, insiste no erro. De todo modo, se na Antiguidade e na Alta Idade Média a heresia era um pensamento religioso que se desviava do pensamento reto, mas que em última instância fora produzido no seio do próprio pensamento cristão, enquanto o pagão era aquele que não fora cristianizado e acreditava em deuses diversos, é interessante observar que já os inquisidores da Baixa Idade Média, e também os do período moderno, chamam de hereges não apenas àqueles que criaram ou praticaram formas não aceitas de cristianismo – como os “cátaros” –, mas também as “bruxas”, pessoas acusadas de praticar o sabbat ou de incorrer em práticas pagãs. Nestes tempos de radicalismo no tratamento da questão religiosa, conforme veremos, haverá uma espécie de aproximação na forma como seriam tratados cristãos desviantes e certos tipos de praticantes do paganismo que estivessem ocultos na comunidade cristã.

Na verdade, depois de um período em que se destacou com alguma evidência por ocasião do Império Carolíngio, ainda com um significado relacionado ao “desvio do pensamento teológico correto”, e depois de um período em que não ocupou mais uma centralidade no pensamento religioso, a noção de “heresia” tendeu a se referir em meados do século XII principalmente a um desvio ou rompimento em relação à Igreja enquanto instituição concretamente estabelecida, ao seu projeto universal, à sua legitimidade como único guia da religiosidade na Cristandade Ocidental. Por exemplo, algumas das mais combatidas heresias deste período foram aquelas que romperam com a Igreja relativamente aos sacramentos e ao reconhecimento do direito que teriam os padres e frades para ministrá-los, isto é, seu papel como intermediários de Deus. Numa Igreja que se empenhava em uma reforma institucional na qual deveriam ocupar uma posição fundamental os sacramentos, estes que asseguravam inclusive rendas importantíssimas para a instituição da Igreja, questionar os sacramentos e a autoridade dos padres, como fariam os cátaros, passaria a ser a típica posição herética a ser mais violentamente combatida. De “desvio do pensamento religioso”, heresia tendia nestes casos a significar o “desvio de uma prática religiosa”, e isto explica a similar repulsa que a Igreja tradicional logo revelaria tanto em relação às rejeições heréticas das práticas eclesiásticas tradicionais, como em relação às práticas pagãs derivadas de permanências de outras formas de religiosidade que não o cristianismo.