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Vale lembrar também que neste mesmo período a posição oficial da Igreja considerou um segundo grupo de heresias, para além daquelas que se referiam a dissidências doutrinais geradoras de novas práticas religiosas. Como nos mostra o decreto Ad abolendam, promulgado em 1184 pelo Papa Lúcio III (1181-1185), tornou-se passível de ser igualmente caracterizada como heresia a emergente motivação de grupos de leigos que agora tinham como proposta exercer a “pregação não autorizada”, como foi o caso de diversos grupos de valdenses, e também dos humiliati.

A implicação deste aspecto é similar à das heresias que rejeitavam os sacramentos e autoridade dos padres. Assumir a função de “pregador” fora do âmbito da estrutura eclesiástica autorizada pela Santa Sé era questionar também o papel dos padres e monges como os únicos e necessários intermediários na relação com Deus. Burchard de Ursperg – cônego premonstratense que escreveu entre 1210 e 1216 –, ao questionar as atividades pregadoras dos humiliati, acusa-os de agir sem autorização e chega a utilizar a imagem de que eles “metiam a foice em seara alheia” (BOLTON, 1992: 72).

Podemos perceber aqui como mudara a conceituação de “heresia” desde a Antiguidade, deixando de se referir a desvios relacionados a sutis questões teológicas, para passar a abarcar simultaneamente tanto aqueles casos das dissidências doutrinárias que geravam novas práticas e representações religiosas – entre os quais os cátaros representavam o modelo mais explosivo – como os casos de pregação proibida ou não autorizada, a exemplo do modelo valdense. É possível aqui acompanhar a percepção do historiador italiano Raoul Manselli, que distingue a partir da documentação do século XII dois filões de heresias bem diferenciados (1963: 118-149). Um deles investe na convergência radicalmente observada entre a palavra evangélica pronunciada e a ação que procura concretizá-la no mundo, e neste sentido aparecem as críticas violentas à decadência da Igreja. Para eles, a prática de uma vida apostólica baseada na imitação de Cristo já conferiria o direito de pregar o Evangelho, de modo que aqui surgiram os primeiros conflitos relacionados com as “pregações não autorizadas”.

O outro filão herético seria aquele que realmente questionava os fundamentos dogmáticos do cristianismo, tal como a Igreja oficial os entendia, e muitas vezes expressaram novas formas de compreensão da religiosidade que, tal como foi dito, logo conduziram a novas práticas religiosas que rejeitavam os sacramentos impostos pela Igreja. Estariam mais próximos do antigo sentido de heresia com a diferença de que eram na verdade muito mais radicais nas suas proposições, que não se limitavam a pequenas questões teológicas como ocorrera com as heresias da Antiguidade e da Alta Idade Média. Estas eram, portanto, as duas vias heréticas que se apresentavam à Cristandade por volta da passagem do século XII ao XIII. Embora bem diferenciados, seria talvez possível identificar entre estes dois filões um traço em comum: a recusa da ideia de que seriam necessários para a salvação da alma a Igreja visível e o quadro oficial de sacerdotes da instituição eclesiástica.

A chegada de Inocêncio III (1160-1216) ao papado, em 1198, também recoloca a questão herética em nível mais complexo. Embora este papa tenha sido o principal estimulador da Cruzada anticátara, por outro lado logo teve sensibilidade para a necessidade de se fazer uma distinctio entre grupos que fossem realmente incompatíveis com o projeto de alargamento da unidade cristã e grupos que poderiam ser reabsorvidos ou incorporados na estrutura da Igreja. Inocêncio III foi talvez o primeiro a perceber muito claramente a diferença entre os dois filões heréticos – um que trazia incontornáveis rupturas ao nível da doutrina, e outro que, via de regra, correspondia meramente a problemas disciplinares de leigos que desejavam viver uma radical vida apostólica e pregar por conta própria.

Neste sentido, Inocêncio III buscou mostrar-se aberto a receber pessoalmente grupos que quisessem lhe apresentar uma proposita da vida que pretendiam levar acompanhada de suas declarações de ortodoxia.

Dependendo da análise de cada caso, poderia conceder a estes grupos permissão para pregarem e viverem no estilo de vita apostolica que almejavam, ou mesmo integrá-los à estrutura eclesiástica, como logo ocorreria com as ordens menores. Em outros casos, ao contrário, as autorizações para pregar poderiam ser negadas, e a insistência neste sentido poderia reclassificar os grupos como heréticos, como foi o caso de certos grupos de valdenses que não se teve sucesso em reabsorver no projeto de alargamento da unidade eclesiástica.

É bem interessante notar que, no contexto político-religioso que em breve se seguiria, logo seriam aproximadas por um fundo de repressão em comum – já sob a égide de uma Inquisição que passa a ser confiada no ano de 1233 aos monges dominicanos – tanto as heresias como as persistências pagãs, particularmente aquelas que poderiam ser compreendidas como práticas de feitiçaria. Um bom sinal disto é o fato de que o Papa Alexandre IV (1254-1261) confia aos inquisidores, além dos casos de heresia, “os casos de sortilégios e divinações com cheiro de heresia”. De igual maneira, a Summa do Ofício da Inquisição, elaborada por Bento de Marselha em 1270, já consagra um capítulo inteiro à “forma e maneira de interrogar os áugures e idólatras” (SCHMITT, 2002). Por aqui já percebemos que a heresia, fenômeno interno ao universo cristão, já se vê aproximada nas proximidades da Baixa Idade Média, enquanto objeto de repressão a ser considerado pelos inquisidores, às práticas pagãs. Essa tendência, que em períodos posteriores se afirmará cada vez mais em favor da classificação dos perseguidos como bruxos ou feiticeiras, foi abordada pelo historiador Brian Lavack através do que ele chamou de “conceito cumulativo de feitiçaria” (LAVACK, 1991). É interessante notar, aliás, que o desenvolvimento nos séculos XIV e XV de toda uma série de “manuais de inquisição”, que vão da Prática da Inquisição de Bernardo Guy em 1324 até os “tratados demonológicos” do século XV, conduz a que se fale finalmente da feitiçaria como a “pior das heresias”, tal como propõe Nicolau Jacquier em seu Flagellum haereticorum fascinariorum datado de 1458, ou ainda que se fale que “a Igreja confrontou-se com a heresia das feiticeiras”, conforme pontuam Jacobus Sprenger e Henrique Institor no seu Maleus Maleficarum (O martelo das feiticeiras), publicado em 1486.

A palavra “heresia”, como se vê, tem sua história e seus matizes internos, suas apropriações e intertextualidades, seus diálogos com outras expressões. Recolocar a questão da necessidade de “observar o herético no processo histórico” é uma das recomendações de Duby em uma famosa conferência sobre Heresias e Sociedades na Europa Pré-Industrial, séculos XI-XVIII (1968), na qual o historiador francês registra precisamente algumas considerações metodológicas fundamentais.

Situados estes âmbitos iniciais, passaremos em seguida a uma reflexão sobre alguns posicionamentos historiográficos importantes.