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2 Algumas discussões historiográficas

As heresias têm atraído a atenção de historiadores e estudiosos ligados a outros campos de conhecimento há bastante tempo.

Poderíamos remontar ao século XVII para encontrar obras específicas no seio da antiga história religiosa, como a História das controvérsias e das matérias eclesiásticas no século XII, escritas por Louis Ellies Du-Pin em 1696. No século XIX também aparecem obras monumentais, despontando nas últimas décadas um interesse especial pelo aspecto mais específico da instituição inquisitorial, como é o caso da clássica História da Inquisição na Idade Média, publicada em 1888 por Henri Charles Lea em três volumes. Mas é com os desenvolvimentos da historiografia do século XX – com novas modalidades historiográficas que surgem através do enriquecimento de interdisciplinaridades várias – que se multiplicam as possibilidades de se estudar as heresias medievais dentro do âmbito de diversificadas dimensões e abordagens historiográficas como a história cultural, a nova história política, a história das mentalidades, a micro-história, para não falar da história social. Sobretudo, as heresias não serão mais apenas estudadas no domínio da história da Igreja, mas também no domínio da história da religiosidade. Ou seja, não mais apenas o estudo das heresias no seio de uma “história da Igreja” enquanto instituição – como as obras de Jean Guiraud sobre as heresias cátaras e valdenses dentro de uma perspectiva da perseguição inquisitorial (1935) – ou mesmo de uma história da religião enquanto sistema de crenças e pensamentos, mas também o estudo das heresias no interior de uma história da religiosidade que considerasse os modos de sentir, as práticas e representações, o imaginário, e a relação de todos estes aspectos com a vida social, os poderes e micropoderes, a cultura em sentido mais amplo.

Surgem então obras mais afinadas com os novos tempos, como o Estudo sobre a heresia no século XII, publicado por Raoul Manselli em 1953, e tantas outras voltadas para aspectos mais específicos. À parte isto, segue o estudo da inquisição enquanto instituição repressiva, mas já a abordando como discurso a ser decifrado, ou como uma história a ser desmistificada, para este caso sendo útil lembrar obras recentes como a de Jacqueline Martin-Bagnaudez, intitulada Inquisição, mitos e realidades (1992), e a de Molinier, sobre a Inquisição no Midi Francês entre os séculos XIII e XIV (1880).

Em que pese todo este grande conjunto de outras obras importantes sobre o assunto no decurso de todo o último século, não é possível pontuar adequadamente os progressos na discussão historiográfica sobre as heresias sem mencionar um grande colóquio temático que se tornou um grande marco para o estudo dos desenvolvimentos heréticos e das concomitantes repressões a estes movimentos nos vários períodos históricos, sem mencionar a riquíssima discussão teórica e metodológica que recolocou simultaneamente a discussão dos principais conceitos envolvidos e as possibilidades de tratamentos historiográficos a partir das diversas abordagens adequadas e disponíveis.

Referimo-nos ao Colloque de Royaumont, realizado em maio de 1962, que teve como temáticas de aprofundamento as Heresias e sociedades. Os textos apresentados neste colóquio internacional por historiadores de várias temporalidades e enfoques historiográficos, bem como os debates que se seguiam à apresentação destes textos, mereceram em 1968 a concretização em livro, com apresentação de Jacques Le Goff, com o título Hérésies et Sociétés (1968). Ali veremos as mais diversas discussões teóricas e apresentações de pesquisas específicas, contando com a participação de autores que vão de historiadores dos mais diversos matizes como Philippe Wolff ou Geremek a antropólogos, sociólogos e filósofos que atuam em interdisciplinaridade com a história, como Michel Foucault.

Apenas para pontuar alguns textos que podem mostrar a amplitude e diversidade assegurada pelo colóquio, mencionaremos a discussão inicial de M.D. Chenu, intitulada Ortodoxia e heresia – o ponto de vista dos teólogos (Hérésies et Sociétés: 9-18), a brilhante conferência de Michel Foucault sobre “Desvios religiosos e saber médico” (p. 19-29), o estudo sobre as relações entre “arte e heresia” apresentado por Pierre Francastel (p. 31-50), e a problematização de Borst sobre “A transmissão da heresia na Idade Média” (p. 273-277). Neste último caso, desenvolvem-se indagações relativas a certas questões fundamentais: “como o heresiarca chega à sua escolha?”, “reagindo a que leituras?”, “contra que colegas?” (DUBY, 1994: 179). E, mais ainda, como se difunde a doutrina herética? A partir de que veículos de transmissão? Através de que geografia, e conformando-se a que lugares de dispersão? Ou, por fim, o que se produz aqui em termos de variados modos de recepção? De particular interesse para os estudos da heresia na Idade Média são os estudos mais específicos, como a conferência de Philippe Wolff sobre “Cidades e campos sob a heresia dos cátaros”, e, acima de tudo, a grande conferência de fechamento do congresso produzida por Georges Duby com o título “Heresias e sociedades na Europa pré-industrial, séculos XI-XVIII”, depois publicada na coletânea Idade Média – Idade dos Homens (1988).

Para a questão que já começamos por abordar no presente artigo será oportuno destacar a observação de Chenu, na discussão inicial do colóquio, de que a heresia resulta menos de um fato psicológico individual do que de um fato sociológico coletivo que coloca as heresias como a reações de grupos sociais específicos a uma nova situação social. Nos debates que se seguem a esta discussão inicial, Morghen pergunta ao expositor e aos demais debatedores se seria possível falar de heresia a não ser diante da existência de uma comunidade herética ou se, ao contrário, seria possível abordar a heresia do ponto de vista de uma nova tomada da consciência religiosa que se desenvolve a partir da reflexão e escolha individual. Estas duas posições são basilares: a heresia como fenômeno social – envolvendo grupos sociais e inter-relações entre grupos sociais – e a heresia como fenômeno que se dá em resposta a algo novo, a uma nova situação social ou política, por exemplo. Guardemos este duplo posicionamento teórico, que mais adiante será fundamental para a clarificação de casos concretos.

Quanto a obras que buscam estabelecer uma visão de conjunto dos movimentos heréticos, estas também têm assegurado um lugar importante tanto na historiografia mais recuada como na historiografia mais recente.

Citaremos como marco importante o trabalho de Malcolm Lambert sobre as Heresias medievais em um período que vai da Reforma Gregoriana à Reforma Protestante dos tempos modernos (LAMBERT, 1992). Com relação aos estudos específicos, poderemos citar uma variedade de estudos importantes relacionados àquela que foi a heresia que mais impacto produziu no imaginário e na vida religiosa no Ocidente Medieval.