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Por outro lado, esta variedade de fontes e testemunhos está distribuída de forma desigual nos conjuntos documentais relativos aos vários períodos históricos. Como bem observou Georges Duby em uma conferência de 1968, há “períodos em que os testemunhos sobre as heresias se multiplicam, e outros, pelo contrário, que são ocos, que são vazios” (1990: 176).

Para o período da Idade Média Central, as fontes começam a aparecer a partir do ano 1000 e tornam-se relativamente abundantes a partir do século XII, quando a Reforma Gregoriana que havia se iniciado em 1049[22], para logo adquirir um forte impulso com Gregório VII, assume novas conotações até chegar ao pontificado de um Inocêncio III que buscará estabelecer um controle efetivo sobre as novas alternativas religiosas que haviam surgido naqueles tempos.

Partindo de um momento mais recuado, poderemos lembrar uma série de crônicas monásticas das quais o exemplo mais significativo são as Histórias de Raul Glaber, escritas entre 1031 e 1042. Cinco casos de heresias mostrados nestas fontes permitem que reflitamos sobre a questão da distinção entre as heresias que ainda se apresentam dotadas de uma marca individual relevante e as que se mostram amplamente caracterizadas por se destacarem aos seus próprios contemporâneos como fenômenos coletivos, já nos séculos XII e XIII, para não falar de períodos posteriores que não dizem respeito à temporalidade que estamos examinando. Entre casos de comportamentos heréticos descritos ao nível da individualidade – como o de um letrado que se tornou herético por amor dos poetas pagãos ou como um camponês que quebrou as imagens e a cruz para se tornar um pregador de ideias estranhas – em dois casos já se insinua o comportamento herético como um fenômeno que se estende ou ameaça se estender para o nível coletivo, mas mesmo assim correspondendo a um número bem limitado de indivíduos. Num caso, 14 clérigos de alta hierarquia eclesiástica são acusados e queimados na cidade de Orleans. Noutro, uma comunidade de homens e mulheres mostra-se abrigada em um castelo em Turim, colocando os bens em comum e praticando a castidade, e terminando por serem condenados embora curiosamente não houvesse nada de inquietante em seu comportamento que não fosse uma busca radical da vida apostólica. Estas situações revelam para o período um predomínio da descrição de heresias assumidas individualmente, ou então alguns casos de pequenos grupos interpretados como heréticos, do que também deixam registro outras fontes da mesma época como a Crônica de Ademar de Chabannes, escrita em 1031, ou a Vida de Gauslin, posta por escrito em torno de 1040.

Antes de passarmos a outras fontes, registraremos que – embora não especificamente interessado nas heresias e sim na questão do pensamento milenarista – algumas das crônicas produzidas em torno do ano 1000 foram examinadas atentamente por Georges Duby em sua obra sobre O Ano Mil (1992). Para a questão documental de que tratamos, esta obra é importante não apenas porque apresenta mais um estudo relevante deste grande historiador francês, mas também porque inclui uma significativa coletânea de documentos, ou trechos importantes de documentos, que são comentados e apresentados por Georges Duby.

A ocorrência de comportamentos heréticos individuais descritos pelas crônicas monásticas da primeira metade do século XI não exclui a ocorrência, naturalmente, de heresias coletivas, embora ainda raras. André Vauchez, em sua obra sobre A espiritualidade na Idade Média Ocidental (1994), chama atenção para as primeiras heresias coletivas que aparecem no Ocidente em torno do ano 1000 – a das Virtudes (Champagne), de Arras ou de Monforte (Lombardia). Antecipando padrões que seriam vividos com muito mais intensidade nos séculos XII e XIII, estas primeiras heresias grupais já tinham em comum a recusa do mundo e da violência, o desprezo pelo corpo e vida sexual, bem como a rejeição das opulentas estruturas eclesiais com seus sacramentos (VAUCHEZ, 1994: 50). De qualquer modo, como observa Vauchez, tratava-se ainda de grupos pouco importantes, facilmente reduzidos ao silêncio pela repressão da hierarquia eclesiástica. Suas vozes sufocadas, contudo, aqui e ali também deixam entrever os protestos coletivos que brevemente estariam expressos com tanta veemência por algumas das heresias do século XII. Dentre estes casos, ainda isolados, saltam aos olhos os boicotes que os patarinos moveram, na Milão de 1050, contra os ofícios celebrados pelos clérigos “nicolaítas”, a quem pretendiam impor o respeito à castidade que consideravam condição fundamental para o estado eclesial (VAUCHEZ, 1994: 46).

Um fato observado pelos historiadores a partir da documentação medieval é uma pequena retração herética na segunda metade do século XI, para depois, no século XII, evidenciar-se uma extraordinária intensificação de movimentos heréticos que já apresentam francamente uma dimensão coletiva, e ainda mais particularmente a partir da Segunda Cruzada em 1150 (CHAUNU, 1993: 207). Christine Thouzelier, que desenvolveu estudos sistemáticos sobre o catarismo e valdeísmo, chega a falar, para a segunda metade do século XI, em um “vazio herético” (THOUZELIER, 1966: 12). Já a partir de 1157, através da documentação relativa às medidas coercitivas tomadas pelo Concílio de Reims, torna- se possível seguir as manifestações das primeiras heresias dualistas: em Champagne (1162), em Colônia (1163), em Vézelay e na Borgonha (1167). Ao mesmo tempo, toda uma vasta região que inclui cidades como Toulouse, Foix e Narbonne torna-se campo fértil para o desenvolvimento do catarismo. Estamos aqui, efetivamente, em um novo momento na história dos movimentos heterodoxos do cristianismo.

Com relação aos processos repressivos desencadeados contra as heresias, importante oportunidade se apresenta aos historiadores para uma época da qual não nos chegaram os processos de repressão contra comportamentos heréticos – tal como ocorreria mais tarde com o processo inquisitorial de Jacques Fournier em princípios do século XIV (DUVERNOY, 1977-1978) – é a possibilidade de acesso a processos que foram transcritos pelos próprios cronistas medievais no interior de suas crônicas, tal como ocorre com um cronista milanês do final do século XI que apresenta o caso também narrado por Raul Glaber, só que transcrevendo em parte o interrogatório do heresiarca. O processo transcrito ou incorporado em uma crônica, com eventuais deformações, não é obviamente o próprio processo inquisitorial – que se assim fosse poderia se beneficiar de outros tipos de tratamento pelos historiadores, mais precisos e voltados para o detalhe, à maneira do que propõem os micro-historiadores que examinaram processos inquisitoriais e judiciais. Mas de qualquer modo é mais uma possibilidade que se apresenta ao historiador disposto a enfrentar as lacunas documentais de arquivos.

As crônicas do século XI, como pudemos ver até aqui, pontuavam eventualmente casos de heresia. Mas será no século XII, e sobretudo no século XIII – sob o impacto da violenta repressão da Cruzada Albigense contra a heresia Cátara –, que teremos crônicas onde as heresias não apenas desempenham um papel central, como também passam a ser percebidas pelos seus contemporâneos como fenômenos coletivos instigantes ou preocupantes. Citaremos a Chronica de Gillaume Pelhisson, que se refere ao período situado entre 1229 e 1244.

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22

O primeiro concílio reformador reúne-se em Reims, em 1049, sob a orientação de Leão IX.