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A partir do século XII, entre as fontes disponíveis para historiadores, vão se destacar os próprios documentos da Reforma Gregoriana, bem como a correspondência dos papas e reformadores. Nestas fontes, os padres casados são enquadrados dentro da “heresia nicolaíta”, para os leigos que haviam comprado alguma função ou posição eclesiástica com dinheiro é utilizada a designação de “heresia simoníaca”, e mesmo as discordâncias políticas poderiam atrair a designação de heresia, como no caso dos eclesiásticos que se colocassem do lado do imperador no confronto entre império e papado. Percebemos ainda aqui, então, certo número de heresias que representam comportamentos individuais, e não práticas coletivas. Aquele que não reconhece as decisões da Sé apostólica deve ser visto como herege.

Despontarão, sobretudo, os casos em que os hereges assim são classificados por se recusarem a praticar ou reconhecer o valor dos sacramentos, tal como ocorre em um caso narrado no De vita sua escrito pelo Monge Guiberto de Nogent já no começo do século XII, no qual dois padres e dois leigos são levados ao bispo por não reconhecerem o valor do batismo das crianças e por negarem o sacrifício da Eucaristia.

De 1120 é o tratado de Pedro, o Venerável – abade de Cluny –, onde era alvejada a “heresia” proposta por um tal Pedro de Bruis, por rejeitar os sacramentos do Batismo e Eucaristia além de declarar a inutilidade das igrejas. Por seu turno, São Bernardo, abade de Claraval, na mesma época iniciava sua perseguição contra Abelardo em vista de suas reflexões sobre o texto sagrado. Sobretudo, passou a atacar obstinadamente as pregações antissacerdotais, e já vamos vê-lo em 1145 desfechar rigorosos ataques contra um comportamento herético, já coletivo, que estaria se formando no Midi francês. Os já mencionados cânones do Concílio de Reims, reunido em 1148 por Eugênio III, serão aqui as fontes privilegiadas.

Com relação aos já mencionados movimentos heréticos dualistas, a primeira utilização da expressão “cátaros” para designar uma heresia aparece em 1163 nos Sermões contra os cátaros, do Monge Eckbert von Schönau, referindo-se a alguns heréticos que tinham sido identificados em colônia. Deste momento em diante, as fontes vão registrando mais e mais grupos inteiros de heréticos, e pode-se dizer que o comportamento herético já se tornou efetivamente um fenômeno coletivo de acordo com a percepção dos seus próprios contemporâneos. A leitura historiográfica das fontes que passam a se referir a grupos heréticos deve estar atenta às intertextualidades: os Sermões contra os cátaros de Eckbert, por exemplo, transplantam para o seu texto trechos inteiros de Santo Agostinho sobre o maniqueísmo. Ao analisarmos estas fontes, é preciso então considerar tanto as possibilidades de diálogo das heresias ligadas ao catarismo com a antiga heresia maniqueísta, como o hábito de escritores cristãos medievais copiarem autores precedentes, adaptando-os às novas situações.

Sobre as relações entre catarismo e maniqueísmo convém lembrar a tese de Pierre Chaunu de que um como outro – com sua rejeição da procriação – são fenômenos típicos da crise de um mundo superpovoado. Neste caso, o catarismo estaria relacionado com as dificuldades de quatro séculos de crescimento demográfico contínuo, e sua rejeição da vida material pertenceria aos indícios precursores do mundo superpovoado (CHAUNU, 1993: 213).

Novos “cânones contra a heresia”, nesta mesma época em que adquire maior visibilidade o movimento cátaro, aparecem nos concílios reunidos pelo Papa Alexandre III: o Concílio de Tours (1163) e o III Concílio de Latrão (1179), constituindo-se base documental importante para revelar o ponto de vista institucional da Igreja a respeito dos novos movimentos religiosos que surgiam, bem como os discursos que saem vitoriosos e as forças que se agrupam em torno do papado. Mas é nas duas últimas décadas do século XII que assistiremos a uma verdadeira explosão de novas formas de religiosidade que os círculos eclesiásticos ligados à Reforma Gregoriana se apressarão em designar como movimentos heréticos. Então, já estaremos plenamente em um mundo onde a heresia passa a ser tratada pelos seus próprios contemporâneos como fenômeno coletivo. Além dos cátaros, adquirem expressão novos grupos que seriam considerados heréticos. Os valdenses, por exemplo, constituem um movimento originado por um mercador lionês que manda traduzir o Evangelho e que, por não conseguir obter a autorização da Igreja, resolve pregar assim mesmo. Os patarinos, ou “humilhados”, correspondem a uma seita de leigos que decidem praticar uma vida apostólica radical. Os passagini formam um grupo que é apresentado nos tratados da época como “cristãos judaizantes”. Os arnaldistas merecem toda a segunda parte de um tratado que principia escrevendo sobre a heresia dos cátaros (ZERNER, 1999: 512). Todos estes grupos denunciam o novo traço daqueles que seriam enquadrados como movimentos heréticos: além de terem atingido uma dimensão coletiva que impressionará os seus contemporâneos, eles questionam diretamente o papel da Igreja de linha papal como única alternativa religiosa ou até mesmo como instituição eclesiástica a ser reconhecida.

Datarão desta época tratados anti-heréticos importantes. Só no sul da Gália, que se estava abrindo como espaço privilegiado para novas formas de religiosidade, registram-se na última década do século XII três tratados importantes, entre eles um tratado de procedência monástica denominado Contra valdenses e contra arianos. Muito surpreendente, mas também bastante sintomático, é o Liber antiheresis escrito por um Valdense – reavivando a ideia discutida anteriormente de que estar em heresia depende do ponto de vista. Já a Summa quatripartita, atribuída a Alain de Lille, começa atacando o dualismo cátaro, em seguida opõe-se à heresia valdense ao mesmo tempo em que registra o ponto de vista eclesiástico oficial sobre a confissão e outras temáticas, e encerra-se por fim com um exame da questão dos judeus e sarracenos – portanto voltando-se para um âmbito exterior ao universo cristão.

São particularmente significativas as fontes anti-heréticas que surgem no entrecruzamento dos direitos eclesiásticos e temporais, possibilitando uma aliança entre os projetos do papado e o projeto político do imperador.

Já em 1184 a decretal Ad abolendam concretizava um programa comum estabelecido entre o imperador do sacroimpério e o Papa Lúcio III, no qual se propunha uma ação repressiva contra grupos heréticos explicitamente mencionados. Esta decretal é, aliás, particularmente importante para a história das heresias, porque introduz a perseguição contra um novo fenômeno que vinha se manifestando desde a década anterior: o desejo de leigos pregarem a Palavra de Deus, mesmo sem a autorização da Igreja. Assim, esta decretal termina por excomungar grupos como o dos valdenses e o dos humiliati, que no seu anseio de viver uma vida realmente apostólica e de pregar o cristianismo antecipam alguns aspectos do movimento mendicante, este que, já algumas décadas depois, seria canalizado pela Igreja sob o comando de Inocêncio III.