É, aliás, com a bula Vergentis in senium, de Inocêncio III, que o papado apresenta como uma de suas estratégias de enfrentamento anti-herético a regularização de uma “criminalização da heresia”, assimilando as práticas heréticas a crimes de lesa-majestade e com isto abrindo espaço para que os poderes temporais encontrassem uma justificativa para punir os hereges com medidas como o confisco de bens e destituição de funções públicas. Ao mesmo tempo o cânone 11 do IV Concílio de Latrão estabelece as bases de um novo tipo de processo, que podia ser deflagrado por denúncias anônimas acerca de comportamentos heréticos, preparando deste modo as bases para a futura instituição da Inquisição.
O auge da aliança entre papado e os poderes temporais contra os movimentos heréticos se materializa na violenta Cruzada Albigense, contra os cátaros do sul da França. A proposta de Inocêncio III era que Felipe Augusto, rei da França, dirigisse suas forças contra os heréticos da Aquitânia, cujos bens poderia confiscar assim que fossem vencidos. Os interesses temporais e eclesiásticos se associam, e os cátaros são violentamente reprimidos com a tomada de castelos e propriedades que os acolhiam. Por outro lado, contra os valdenses, Inocêncio III prefere adotar uma estratégia de tolerância de modo a não se indispor com a população mais humilde de regiões nas quais os valdenses angariavam simpatia. Deste modo, incube o futuro São Domingos da missão, parcialmente bem-sucedida, de reconvertê-los, embora a heresia valdense ainda persista em períodos posteriores. A pregação mendicante dos futuros dominicanos, desta maneira, surge como alternativa que se adapta às estratégias de Inocêncio III para enfrentar as religiosidades heréticas, embora o ponto de vista mendicante não deixe de ser também uma nova proposta de religiosidade.
O movimento mendicante – incluindo franciscanos e dominicanos – despontaria na terceira década do século XIII como uma nova proposta de pregação que Inocêncio III soube incorporar aos quadros da Igreja enquadrando-o nas chamadas “ordens menores”. Ao mesmo tempo, o papa soube cooptar os mendicantes para seu projeto de combate às heresias, ao confiar a clérigos da Ordem Dominicana a função inquisidora.
A partir de 1222, dentro da combinação de interesses da Igreja e dos governos temporais, surgem os tribunais da Inquisição, organizados em 1231 pela bula Excommunicamus, de Gregório IX. A partir daqui teremos um novo tipo de fontes vitais para os historiadores: os processos inquisitoriais.
Reprimindo incisivamente o pensamento herético ou discordante em relação à Igreja, estes processos não apresentam a figura do advogado para defender a parte acusada, e por isso impunham que se chegasse à confissão através de recursos que incluíam formas de pressão diversas e finalmente a tortura. A Inquisição intenta diminuir a vaga de novas propostas de religiosidade que a hierarquia romana pretendia desautorizar, inibir ou mesmo eliminar, e com o seu advento os “tratados sobre a heresia” também passaram a ser escritos visando orientar o trabalho dos inquisidores. Surge aqui outra série de fontes importantes que principia com os tratados italianos escritos a partir de meados da década de 1230.
Uma estratégia discursiva presente nestes tratados é que os autores muitas vezes apresentam-se como antigos heréticos, depois convertidos, buscando através desta operação trazer ao texto a ideia de que falam com profundo conhecimento de causa. Também os próprios inquisidores escreveram tratados similares. O mais conhecido é a Summa contra chatares, escrita em 1250 pelo inquisidor Raynier Sacconi. Da mesma forma, outro tratado foi composto em 1260 pelo inquisidor chamado Anselmo de Alexandria.
A partir daí um novo gênero literário está estabelecido. Quando adentramos o século XIV, e sobretudo o século XV, começam a se mostrar também os “manuais de inquisidores” – dos quais o primeiro exemplo importante foi o já mencionado Practica offici inquisitionis, escrito por Bernardo Guy em 1324. Daí em diante, os historiadores têm à disposição tanto “manuais de inquisidores” como “tratados de demonologia”, cujo exemplo mais célebre será o Martelo das feiticeiras, publicado em 1486 por dois teólogos dominicanos (KRAMER & SPREGNER, 1991). Este tratado, que se difunde a partir de inúmeras cópias em uma época em que acabava de ser inventada a tipografia, será um dos motivadores para a “caça às bruxas” do século XVI, quando então já estaremos em tempos modernos.
Com relação à Inquisição, apesar da ocorrência do célebre manual de Bernardo Guy em 1324, é oportuno lembrar que ocorre certa retração da prática inquisitorial no início do século XIV, já que a principal heresia combatida – o catarismo – havia refluído. Por outro lado, a emergência do wycliffismo na Inglaterra traz a repressão do aparelho inquisitorial entre 1397 e 1426 a este país, que praticamente não registrara grandes atividades heréticas nos séculos XII e XIII. Ao final do século XV, principalmente na Península Ibérica, a Inquisição volta a se manifestar com maior intensidade. Na Espanha, particularmente, ela enfatizará neste período a perseguição aos cristãos-novos. Por outro lado, segue por outros meios a perseguição a eventuais heresias, sobretudo aos movimentos cismáticos que já prenunciam ou prefiguram de algum modo a futura Reforma Luterana (p. ex.: WYCLIFF & HUSS). No século XVI já teremos também “processos inquisitoriais” mais detalhados, aqui também dirigidos – além da perseguição aos cristãos-novos – contra indivíduos acusados de heresia ou feitiçaria.
As fontes sobre as heresias produzidas no âmbito das instituições que as reprimiram, conforme vimos até aqui, são abundantes. Mais rara foi a sobrevivência de fontes produzidas pelos próprios homens que foram considerados hereges. Citaremos um Novo Testamento acompanhado de um rito litúrgico provençal, datado de meados do século XIII, e também do início deste mesmo século outro Novo Testamento precedido de um apócrifo intitulado “Interrogação de João”, que mais tarde passou a ser referido pelos inquisidores como “Segredo dos hereges”. Um grupo de inquisidores também teve o cuidado de preservar, para o seu próprio uso, uma coletânea de textos heréticos também do século XIII.
Preservou-se também um tratado doutrinal sobre os dois princípios, escrito da perspectiva do dualismo cátaro, amplamente construído a partir de citações bíblicas. Os receptores previstos para o texto são presumivelmente aqueles a quem se pretendia converter às ideias cátaras, procurando atingir vários níveis de competência leitora, já que o tratado é precedido de um resumo apresentado pelo seu autor como destinado à “instrução dos ignorantes”. Em seguida, são desenvolvidos temas como o “livre-arbítrio” antes de se descrever um ritual litúrgico, até se encerrar o tratado com uma exortação denominada De persecutionibus na qual os fiéis são conclamados a enfrentar as perseguições tais como as enfrentaram os profetas bíblicos.